Por Jânsen Leiros Jr.
“O relato épico é composto num belo e simples estilo compacto típico da prosa hebraica antiga. As cenas muito curtas são marcadas por alguns toques ousados. As narrativas e os discursos são uniformes; desse modo, uma pequena discrepância na fraseologia produz o máximo efeito. O número de personagens em cada cena é limitado, geralmente a dois. A ação é rápida e definitiva. O diálogo entre os personagens é direto e conciso. A caracterização é desenvolvida por meio de discursos e de uma resposta da pessoa a uma ação. Padrões simétricos contribuem para as cenas concisas. Os números são empregados para expressar enorme vantagem; a sequência de três, sete e dez tem grande significado. A absoluta simplicidade da narrativa contrasta visivelmente com a profundidade do problema tratado. Consequentemente, o relato, embora simples, cativa a imaginação do público. Ele tem um notável encanto que transcende eras e culturas.
Comentários do Antigo Testamento: Jó / John E. Hartley;
tradução
Edmilson Francisco Ribeiro. – São Paulo: Cultura Cristã,
2023; pág. 99
A
composição do texto do livro se utiliza de um estilo literário antigo, que
resume as causas e circunstâncias que sustentam a história que se desenrola no
miolo da narrativa. Cenas curtas, diálogos rápidos, realidade controversa e
poucos personagens envolvidos, produzem um relato rápido, que facilita a
memorização e a compreensão dos porquês
que naturalmente surgirão ao longo da história a ser desenvolvida. O mesmo
estilo literário retorna no epílogo[3]
do livro, no capítulo 42:7-17, que encerra a história de maneira rápida e sem
qualquer aviso prévio. Ou seja, as narrativas que emolduram o volume central do
livro de Jó aceleram o início e apressam o seu fim, como que dizendo,
resumidamente, será por isso e por isso foi.
Mas
em que exatamente o uso desse estilo influencia a compreensão do prólogo? Em
tudo[4].
No caso da narrativa de Jó, o estilo projeta uma contundente e inquietante
desimportância à realidade objetiva de sua introdução. Ou seja, o que importou
ao autor do livro foi estabelecer as circunstâncias iniciais da história, e não
a discussão quanto à pertinência das cenas que definiu como necessárias para
ambientar o seu relato. Talvez um exemplo concreto nos ajude numa melhor
compreensão. Vamos a ele.
“Havia um coelho nas regiões
desérticas do sudoeste da América do Norte, que por saudável e veloz, realizava
corridas intermináveis de um lado ao outro, sempre à procura de comida e água.
No dia em que a coruja, a mais observadora das aves, assistia a mais uma das
velozes corridas do coelho, chamou-lhe atenção e disse: "Cuidado, coelho.
Você é rápido, sem dúvida, mas muito imprudente. Vez por outra chega muito
perto do desfiladeiro, já observei. Procure correr longe da beirada do
caminho." O coelho, no entanto, longe de ser grato ao aviso da coruja, e
confiante de que sabia bem o que fazia, seguiu correndo por onde achava melhor.
Não se pôs o sol, antes que o coelho, por teimosia, caísse no precipício.
Ora, a família do coelho, doída
pela perda de seu membro mais rápido, iniciou uma investigação sobre as
possíveis causas que o levaram a cair naquele abismo. Teria sido a falta de uma
pavimentação apropriada? Será, talvez, que a colocação de uma grade de proteção
não tivesse evitado sua queda? Poderia ser a qualidade da água que bebera
naquele dia, a causa de um desconforto qualquer que prejudicasse sua
concentração? Pedindo a palavra, o leão da montanha, declara ter certeza de que
o coelho se atirou do precipício, porque provavelmente tentara escapar das
consequências de alguma arte que fizera dias antes do acontecido...”. Quem
quiser prosseguir escrevendo a historinha,
sinta-se à vontade.
Notem
que a partir do segundo parágrafo da narrativa acima, os envolvidos iniciam uma
especulação perturbadora sobre as causas da morte do coelho, sem sequer desconfiarem
do que realmente aconteceu. Mas você e eu, que fomos testemunhas do que se
passou no primeiro parágrafo, sabemos muito bem porque o coelho acabou se
precipitando no penhasco. Ora, e o que tem a ver isso com a declarada desimportância da realidade objetiva[5]?
Tem que, apesar de sabermos obviamente que o diálogo entre um coelho e uma
coruja é impossível, posto que nem um nem outro é capaz de falar, nos
envolvemos com a narrativa ao ponto de acompanhar, não só o que aconteceria com
o coelho teimoso, mas quase que poderíamos esticar a narrativa, sobre os desdobramentos
das investigações à cerca da causa-morte do pomposo bichinho. E isso é o que
encanta no estilo literário da narrativa. O padrão utilizado nos cativa e
envolve.
Além
do magnetismo que o estilo exerce sobre nós, perceba que mesmo sem tirar as
vistas da linha onde se encontra nesse momento, você é plenamente capaz de
repetir toda a história contida no primeiro parágrafo da fabula improvisada
acima, que relata a cena do diálogo entre o coelho e a coruja e o desfecho de
sua teimosia. Mas com toda certeza, o desenrolar da história que se inicia a
partir do segundo parágrafo, já exige ao menos uma olhadela lá para cima, para que
o conteúdo seja lembrado. Está aí o poder assimilador que a moldura do texto
exerce sobre o leitor, ou o ouvinte da narrativa. Aliás, muito mais sobre o
ouvinte. Mas isso é assunto para nos aprofundarmos adiante, não muito depois
daqui.
Retornando
ao texto bíblico, mesmo que uma pessoa minimamente atenta jamais tenha lido Jó
por inteiro, se alguém lhe pedir um resumo da história narrada no livro, seguramente
poderá resumir que Jó era um homem bom e
temente a Deus, que perdeu tudo o que tinha e foi coberto de doenças, para ser
provado ao diabo, que ele amava Deus sinceramente e sem interesse. E no final,
Deus recompensou sua fidelidade devolvendo tudo o que havia perdido, dez vezes
mais; e acabou o livro de Jó.
E
já que agora entendemos perfeitamente o papel e a relevância do estilo
literário no prólogo da narrativa de Jó, que tal retornarmos aos detalhes do
texto, seguindo efetivamente com nossos exercícios espirituais? O meu desejo
sincero, é que a busca diligente pela compreensão nos leve a desvendar os
mistérios mais profundos desse livro inspirador.
[1]
Os estilos literários referem-se às características específicas que definem a
forma como um texto é escrito e organizado. Existem vários estilos literários,
como narrativo, descritivo, lírico, dramático, entre outros, cada um com suas
próprias características distintas.
No livro de Jó, o estilo literário predominante é o narrativo. A história de Jó é contada em forma de prosa, com uma sequência de eventos que ocorrem ao longo do tempo. Há diálogos entre os personagens, descrições de cenários e situações, além de uma narrativa que avança de forma linear, apresentando os desafios e as provações enfrentadas pelo protagonista.
[2]
Um prólogo em literatura é uma seção introdutória de uma obra, seja ela um
livro, uma peça teatral, um filme, etc. Ele geralmente precede o corpo
principal da obra e serve para fornecer informações adicionais ao leitor, como
contexto histórico, introdução aos personagens, explicação do cenário, ou
qualquer outra informação relevante que ajude a situar o leitor na trama que
está por vir. O prólogo muitas vezes estabelece o tom da obra e prepara o
leitor para o que está por vir.
[3] Um epílogo é a parte de uma obra literária que vem após a conclusão da história principal e serve para oferecer um fechamento adicional, reflexões finais, ou para fornecer informações sobre o destino dos personagens após os eventos principais da trama. Geralmente, o epílogo oferece uma conclusão final à história e pode incluir reflexões sobre os temas abordados, lições aprendidas ou implicações futuras dos eventos narrados. Em resumo, é uma seção que complementa o desfecho da história principal e oferece um encerramento mais completo para o leitor.
[4] A escolha do estilo literário para o prólogo de uma obra pode ter uma influência significativa na forma como os leitores percebem e se envolvem com a história. O prólogo é a primeira impressão que os leitores têm da obra e, portanto, o estilo utilizado pode estabelecer o tom, criar expectativas e preparar o terreno para os eventos que se seguirão. Dependendo do estilo escolhido, o prólogo pode ser mais envolvente, emocionante, informativo ou misterioso, afetando assim a experiência geral de leitura e a interpretação dos temas e personagens apresentados.
[5]
A realidade objetiva refere-se à existência independente dos objetos, eventos e
fenômenos, independentemente de qualquer percepção ou interpretação subjetiva
por parte de um observador. Em outras palavras, a realidade objetiva existe
fora da mente individual e é considerada como sendo tangível e mensurável por
meio de métodos científicos e observações empíricas. Isso significa que a
realidade objetiva é consistente e independente da opinião, crença ou
experiência pessoal de qualquer indivíduo. Por exemplo, o movimento dos
planetas, as leis da física, eventos históricos documentados e os resultados de
experimentos científicos são todos exemplos de realidade objetiva.