“...Embora os muitos avanços feitos no conhecimento, especialmente no campo da medicina, tenham aumentando a qualidade da vida humana, o sofrimento persiste. É possível dizer que o sofrimento tem aumentado entre os seres humanos em razão dos problemas globais que compõe a miséria humana. Por isso o livro de Jó ainda é relevante, porque Jó permanece como um exemplo da fé em Deus superando o mais severo sofrimento humano.
A mensagem do livro de Jó desempenha um papel vital na
teologia do cânon. Ele modifica um entendimento doutrinário simplista,
fatalista da retribuição que condena todos os que sofrem e louva todos os que
prosperam a despeito da integridade moral deles. Eu acredito que o relato de Jó
inspirou Isaías de tal modo que Jó serviu como um dos modelos de Isaías ao
retratar o Servo Sofredor.”
Comentários do Antigo Testamento – Jó, de John E. Hartley ©
2023, Editora Cultura Cristã; Prefácio do Autor; pág. 9
Explorar o tema do sofrimento humano é adentrar em um território vasto e complexo, onde as interações entre o indivíduo e o divino se entrelaçam em uma tapeçaria de reflexões profundas e desafios persistentes. Mesmo diante dos avanços extraordinários da ciência e da medicina, o sofrimento persiste como uma realidade inegável, marcando a jornada humana com suas dores e questionamentos.
No
âmago dessa discussão, encontra-se o livro de Jó, um texto antigo que ecoa
através dos séculos como um testemunho da fé diante da adversidade. Jó não é
apenas um personagem bíblico, mas um arquétipo[1]
da experiência humana diante do sofrimento. Sua história desafia concepções
simplistas de retribuição divina, convidando-nos a mergulhar nas profundezas do
significado do sofrimento e da fé.
Os
comentários de John E. Hartley[2]
sobre o papel de Jó na teologia oferecem insights valiosos sobre a mensagem
atemporal desse texto. Jó não é apenas um exemplo de integridade moral, mas um
símbolo de resistência diante das provações da vida. Sua história ressoa em
cada um de nós, confrontando-nos com a complexidade do sofrimento humano e a
busca inquietante por respostas diante do divino.
Ao
nos aprofundarmos na discussão sobre o papel do sofrimento na sociedade, somos
confrontados com uma miríade de perspectivas. De um lado, há aqueles que veem o
sofrimento como um catalisador essencial para o crescimento pessoal e
espiritual. Pensadores como Viktor Frankl[3]
e C.S. Lewis[4]
destacam a capacidade do sofrimento de nos conduzir a uma compreensão mais
profunda de nós mesmos e do mundo ao nosso redor.
Por
outro lado, surgem vozes que questionam a necessidade do sofrimento como um
meio de crescimento. Rogers, Seligman, Schweitzer, Nouwen e Confúcio[5]
oferecem visões que enfatizam a importância do autoconhecimento, da compaixão,
do amor e da sabedoria como caminhos alternativos para o desenvolvimento
pessoal e espiritual.
Diante
dessa diversidade de perspectivas, somos desafiados a adotar uma abordagem mais
holística e integrativa. Reconhecer a complexidade do sofrimento humano implica
aceitar que não há respostas simples ou soluções definitivas. A jornada rumo à
realização pessoal e espiritual é marcada por um equilíbrio delicado entre
enfrentar os desafios com coragem e cultivar momentos de gratidão e apreciação
pelas experiências positivas da vida.
Portanto,
convido você a se aventurar por esse território de reflexão e descoberta,
explorando as múltiplas dimensões do sofrimento humano e seu papel na jornada
rumo à plenitude e à realização. Ao fazer isso, estaremos não apenas expandindo
nossos horizontes intelectuais, mas também enriquecendo nossa compreensão da
condição humana e da busca pelo significado na vida.
O sofrimento como castigo divino
Nos
tempos de Jó, o entendimento predominante afirmava que o sofrimento era um
sintoma de reprovação divina pelo comportamento moral de um indivíduo ou de
toda uma comunidade. Esse conceito estava enraizado na ideia de retribuição,
onde o sucesso e a prosperidade eram vistos como sinais do favor de Deus,
enquanto o sofrimento e a adversidade eram interpretados como castigo pelos
pecados cometidos. Ainda hoje tal entendimento transita velado por diversas
comunidades religiosas, infelizmente, servindo de mote acusatório, ou incentivo
a enaltecimentos infundados.
No
livro de Jó, esse pensamento é confrontado de maneira vigorosa. Jó, inicialmente
retratado como um homem justo e íntegro, é subitamente atingido por uma série
de calamidades: ele perde seus filhos, sua riqueza e sua saúde, levando sua
vida à ruína completa. Essa série de tragédias é interpretada por seus amigos
como evidência de que Jó deve ter cometido algum pecado grave para merecer tal
punição divina.
Os
amigos de Jó, Elifaz, Bildade e Zofar, representam essa visão tradicional da
retribuição divina. Eles argumentam repetidamente que o sofrimento de Jó só
pode ser explicado como consequência de sua própria culpa e pecado. No entanto,
Jó refuta veementemente essas acusações, defendendo sua inocência e
recusando-se a admitir qualquer culpa que justificasse seu sofrimento.
Ao
longo do diálogo entre Jó e seus amigos, fica claro que essa interpretação
simplista do sofrimento é insuficiente para explicar a complexidade da
experiência humana. Jó desafia seus amigos a questionar suas próprias
concepções sobre o propósito do sofrimento e a natureza da justiça divina. Ele
argumenta que o sofrimento não pode ser reduzido a uma simples equação de causa
e efeito, mas é parte integrante da condição humana, independentemente do
comportamento moral individual. E há um outro fator que influencia a inflexível
compreensão da realidade por parte dos amigos de Jó; o receio de um eventual
semelhante experiência em suas próprias vidas. Mas falaremos disso quando
analisarmos seus discursos mais adiante.
Assim,
o livro de Jó oferece uma poderosa crítica à ideia de que o sofrimento é sempre
um sinal de reprovação divina. Ele nos convida a considerar a possibilidade de
que o sofrimento faz parte de um mistério mais amplo, além da compreensão
humana, e que a justiça divina pode transcender nossas noções limitadas de
mérito e culpa. Essa reflexão desafia não apenas os personagens do livro, mas
também seus leitores ao longo dos séculos a repensar concepções sobre o
sofrimento e a fé, com acolhimento e boa-vontade.
Sofrimento, provação e muita
confusão
É
muito comum identificarmos em ministrações sobre o livro de Jó, a confusão que
muita gente faz entre sofrimento e provação. Sim, há uma conexão entre um
conceito e outro. Ambos envolvem experiências difíceis e desafiadoras na vida
de uma pessoa, mas há diferenças importantes entre eles, que nos obriga a
realizarmos marcações relevantes para melhor entendimento.
O
sofrimento como aflição severa, geralmente
se refere a qualquer forma de dor, angústia, tristeza ou adversidade que uma
pessoa enfrenta em sua vida. Pode ser físico, emocional, espiritual ou social e
pode resultar de várias causas, como doença, perda, conflito, ou injustiça. O
sofrimento é uma parte inevitável da experiência humana e é visto como um
aspecto negativo da vida.
Por
outro lado, as provações têm uma conotação mais específica e muitas vezes estão
associadas a testes de fé, resistência ou caráter. As provações são geralmente
vistas como desafios ou dificuldades que uma pessoa enfrenta com o propósito de
fortalecer sua fé, desenvolver sua resiliência ou promover seu crescimento
espiritual. Embora as provações possam envolver algum sofrimento, nem todo
sofrimento é necessariamente uma prova.
Uma
das principais semelhanças entre o sofrimento e as provações é que ambos podem
ser experiências dolorosas e desafiadoras. Ambos podem testar a fé, a paciência
e a resiliência de uma pessoa. Além disso, tanto o sofrimento quanto as
provações podem fornecer oportunidades para o crescimento pessoal,
autoconhecimento e transformação.
No
entanto, uma diferença importante entre eles é a perspectiva subjacente.
Enquanto o sofrimento é muitas vezes visto como algo negativo e indesejável, as
provações são geralmente consideradas como algo que, apesar de difícil, pode
ter um propósito ou significado mais profundo. As provações são entendidas como
oportunidades para aprender, crescer e fortalecer-se, enquanto o sofrimento
muitas vezes é visto como algo a ser evitado ou superado.
Em
suma, enquanto o sofrimento é uma experiência mais ampla e genérica de dor e
adversidade, as provações são desafios específicos que podem ter um propósito
ou significado mais profundo para um indivíduo. Ambos podem ser difíceis de
enfrentar, mas as provações são comumente percebidas como oportunidades para
crescimento e desenvolvimento pessoal, como um fim em si mesma.
... e chega de sofrimento
Isso
entendido, parece muito mais assertivo compreendermos que o caráter
instrumental que tentamos emprestar ao sofrimento em si, está muito mais afeto à
provação, essa sim uma circunstância que promove experimentação e crescimento. Ou
seja, se é certo dizermos que Deus se utiliza de condições e circunstâncias
para nos ensinar alguma coisa e promover amadurecimento, isso está muito mais
ligado à provação, do que ao sofrimento ou às experiências de bem-estar como
defendidas de lado a lado.
Sim,
porque ao analisarmos mais de perto visão dos que entendem o sofrimento como
instrumento determinante e eficaz, surgem questionamentos importantes. Se as
aflições severas fossem de fato o principal motor do crescimento pessoal,
poderíamos esperar que sociedades marcadas pelo alto grau de adversidade fossem
também as mais virtuosas e evoluídas moralmente. No entanto, essa correlação
nem sempre se verifica na prática. Mesmo em contextos de extrema privação e
sofrimento, encontramos exemplos de comportamento moralmente questionável e
falta de empatia, que flagram a impossibilidade de aplicação da relação inevitável
de causa e efeito.
Por
outro lado, os que argumentam que experiências positivas e bem-estar são
igualmente capazes de promover o crescimento pessoal, enfrentam desafios quando
confrontados com a realidade. Porque se tais condições fossem principais impulsionadores
do crescimento pessoal, poderíamos esperar que os segmentos mais privilegiados
da sociedade fossem também os mais virtuosos e altruístas. No entanto, essa não
é necessariamente uma realidade experimentada, pois encontramos pessoas em
ambientes de conforto e abundância, que demonstram falta de empatia e preocupação
com o bem-estar do próximo, sem sequer compreender seu papel no mundo, vivendo única
e exclusivamente para si mesmas.
Independentemente
do que se acredita ou se deixa de acreditar, diante de conceitos tão próximos e
de fronteiras tão tênues, é muito comum haver equívocos de compreensão e de
afirmações. A questão nos é mesmo muito nebulosa. O intuito aqui, porém, longe
de definir limites entre conceitos, é provocar-nos em exercícios de avaliação,
que melhorem a mira na direção de profundas e compassivas conclusões. Porque
diferentemente das acusações inclementes e cruéis que surgirem de variados e
superficiais observadores, o que nos importa é acolher quem quer que seja,
esteja sendo provado ou sofrendo por quaisquer consequências, por dever de ofício
e misericórdia dos que são chamados ao amor matricial do Reino de Deus.
[1]
Arquétipo é um padrão ou modelo universalmente reconhecido, seja de um
personagem, uma situação, um símbolo ou um tema, que transcende culturas e
épocas. Eles são frequentemente encontrados em mitos, contos de fadas,
religiões e obras literárias, representando ideias, conceitos ou padrões de
comportamento que são comuns à experiência humana. Em suma, um arquétipo é uma
forma simbólica fundamental que evoca significados profundos e universais.
[2]
John E. Hartley é autor e teólogo conhecido por seus estudos e comentários
sobre o Antigo Testamento, especialmente o livro de Jó. Ele é reconhecido por
sua contribuição acadêmica no campo da exegese bíblica e é autor de diversas
obras que abordam temas teológicos e interpretações das Escrituras Sagradas.
[3]
Viktor Frankl foi um neurologista, psiquiatra e sobrevivente do Holocausto. Ele
é mais conhecido como o fundador da Logoterapia, uma abordagem psicoterapêutica
centrada no sentido da vida. Frankl é autor de "Em Busca de Sentido",
onde descreve suas experiências nos campos de concentração e explora a
importância de encontrar significado mesmo em situações de extremo sofrimento.
[4]
C.S. Lewis foi um escritor britânico, professor universitário e apologista
cristão. Ele é conhecido principalmente por suas obras de ficção, como "As
Crônicas de Nárnia", e por seus escritos teológicos, incluindo "O
Problema do Sofrimento", onde aborda questões relacionadas ao sofrimento à
luz da fé cristã. Lewis também foi um dos mais proeminentes defensores do
cristianismo no século XX
[5]
Resumo sobre os autores citados:
·
Rogers: Refere-se a Carl Rogers, um psicólogo
humanista americano conhecido por sua abordagem centrada no cliente. Ele
enfatizou a importância do autoconhecimento e do crescimento pessoal na
psicoterapia.
·
Seligman: Refere-se a Martin Seligman, um
psicólogo americano que é um dos fundadores da psicologia positiva. Ele
defendeu a ideia de que o florescimento humano pode ser alcançado através do
cultivo de emoções positivas, forças pessoais e relacionamentos significativos.
·
Schweitzer: Refere-se a Albert Schweitzer, um
teólogo, filósofo e médico alemão conhecido por seu trabalho humanitário na
África. Ele enfatizou a importância da compaixão e do serviço aos outros como
caminhos para o crescimento espiritual.
·
Nouwen: Refere-se a Henri Nouwen, um teólogo
católico e escritor conhecido por seus escritos sobre espiritualidade e vida
interior. Ele destacou a importância da vulnerabilidade e do amor incondicional
como elementos essenciais para o crescimento espiritual.
·
Confúcio: Refere-se a Confúcio, um filósofo
chinês antigo cujos ensinamentos enfatizavam a importância da virtude, da
sabedoria e da harmonia social para uma vida plena e significativa.
Cada um desses autores
contribuiu de maneiras diferentes para a compreensão do sofrimento humano e
ofereceu perspectivas únicas sobre como lidar com ele.