quarta-feira, 17 de abril de 2024

O Problema do Sofrimento - Parte 3; E chega de sofrimento

Por Jânsen Leiros Jr.

  

“...Embora os muitos avanços feitos no conhecimento, especialmente no campo da medicina, tenham aumentando a qualidade da vida humana, o sofrimento persiste. É possível dizer que o sofrimento tem aumentado entre os seres humanos em razão dos problemas globais que compõe a miséria humana. Por isso o livro de Jó ainda é relevante, porque Jó permanece como um exemplo da fé em Deus superando o mais severo sofrimento humano.

A mensagem do livro de Jó desempenha um papel vital na teologia do cânon. Ele modifica um entendimento doutrinário simplista, fatalista da retribuição que condena todos os que sofrem e louva todos os que prosperam a despeito da integridade moral deles. Eu acredito que o relato de Jó inspirou Isaías de tal modo que Jó serviu como um dos modelos de Isaías ao retratar o Servo Sofredor.”

 

Comentários do Antigo Testamento – Jó, de John E. Hartley © 2023, Editora Cultura Cristã; Prefácio do Autor; pág. 9

Explorar o tema do sofrimento humano é adentrar em um território vasto e complexo, onde as interações entre o indivíduo e o divino se entrelaçam em uma tapeçaria de reflexões profundas e desafios persistentes. Mesmo diante dos avanços extraordinários da ciência e da medicina, o sofrimento persiste como uma realidade inegável, marcando a jornada humana com suas dores e questionamentos.

No âmago dessa discussão, encontra-se o livro de Jó, um texto antigo que ecoa através dos séculos como um testemunho da fé diante da adversidade. Jó não é apenas um personagem bíblico, mas um arquétipo[1] da experiência humana diante do sofrimento. Sua história desafia concepções simplistas de retribuição divina, convidando-nos a mergulhar nas profundezas do significado do sofrimento e da fé.

Os comentários de John E. Hartley[2] sobre o papel de Jó na teologia oferecem insights valiosos sobre a mensagem atemporal desse texto. Jó não é apenas um exemplo de integridade moral, mas um símbolo de resistência diante das provações da vida. Sua história ressoa em cada um de nós, confrontando-nos com a complexidade do sofrimento humano e a busca inquietante por respostas diante do divino.

Ao nos aprofundarmos na discussão sobre o papel do sofrimento na sociedade, somos confrontados com uma miríade de perspectivas. De um lado, há aqueles que veem o sofrimento como um catalisador essencial para o crescimento pessoal e espiritual. Pensadores como Viktor Frankl[3] e C.S. Lewis[4] destacam a capacidade do sofrimento de nos conduzir a uma compreensão mais profunda de nós mesmos e do mundo ao nosso redor.

Por outro lado, surgem vozes que questionam a necessidade do sofrimento como um meio de crescimento. Rogers, Seligman, Schweitzer, Nouwen e Confúcio[5] oferecem visões que enfatizam a importância do autoconhecimento, da compaixão, do amor e da sabedoria como caminhos alternativos para o desenvolvimento pessoal e espiritual.

Diante dessa diversidade de perspectivas, somos desafiados a adotar uma abordagem mais holística e integrativa. Reconhecer a complexidade do sofrimento humano implica aceitar que não há respostas simples ou soluções definitivas. A jornada rumo à realização pessoal e espiritual é marcada por um equilíbrio delicado entre enfrentar os desafios com coragem e cultivar momentos de gratidão e apreciação pelas experiências positivas da vida.

Portanto, convido você a se aventurar por esse território de reflexão e descoberta, explorando as múltiplas dimensões do sofrimento humano e seu papel na jornada rumo à plenitude e à realização. Ao fazer isso, estaremos não apenas expandindo nossos horizontes intelectuais, mas também enriquecendo nossa compreensão da condição humana e da busca pelo significado na vida.

O sofrimento como castigo divino

Nos tempos de Jó, o entendimento predominante afirmava que o sofrimento era um sintoma de reprovação divina pelo comportamento moral de um indivíduo ou de toda uma comunidade. Esse conceito estava enraizado na ideia de retribuição, onde o sucesso e a prosperidade eram vistos como sinais do favor de Deus, enquanto o sofrimento e a adversidade eram interpretados como castigo pelos pecados cometidos. Ainda hoje tal entendimento transita velado por diversas comunidades religiosas, infelizmente, servindo de mote acusatório, ou incentivo a enaltecimentos infundados.

No livro de Jó, esse pensamento é confrontado de maneira vigorosa. Jó, inicialmente retratado como um homem justo e íntegro, é subitamente atingido por uma série de calamidades: ele perde seus filhos, sua riqueza e sua saúde, levando sua vida à ruína completa. Essa série de tragédias é interpretada por seus amigos como evidência de que Jó deve ter cometido algum pecado grave para merecer tal punição divina.

Os amigos de Jó, Elifaz, Bildade e Zofar, representam essa visão tradicional da retribuição divina. Eles argumentam repetidamente que o sofrimento de Jó só pode ser explicado como consequência de sua própria culpa e pecado. No entanto, Jó refuta veementemente essas acusações, defendendo sua inocência e recusando-se a admitir qualquer culpa que justificasse seu sofrimento.

Ao longo do diálogo entre Jó e seus amigos, fica claro que essa interpretação simplista do sofrimento é insuficiente para explicar a complexidade da experiência humana. Jó desafia seus amigos a questionar suas próprias concepções sobre o propósito do sofrimento e a natureza da justiça divina. Ele argumenta que o sofrimento não pode ser reduzido a uma simples equação de causa e efeito, mas é parte integrante da condição humana, independentemente do comportamento moral individual. E há um outro fator que influencia a inflexível compreensão da realidade por parte dos amigos de Jó; o receio de um eventual semelhante experiência em suas próprias vidas. Mas falaremos disso quando analisarmos seus discursos mais adiante.

Assim, o livro de Jó oferece uma poderosa crítica à ideia de que o sofrimento é sempre um sinal de reprovação divina. Ele nos convida a considerar a possibilidade de que o sofrimento faz parte de um mistério mais amplo, além da compreensão humana, e que a justiça divina pode transcender nossas noções limitadas de mérito e culpa. Essa reflexão desafia não apenas os personagens do livro, mas também seus leitores ao longo dos séculos a repensar concepções sobre o sofrimento e a fé, com acolhimento e boa-vontade.

Sofrimento, provação e muita confusão

É muito comum identificarmos em ministrações sobre o livro de Jó, a confusão que muita gente faz entre sofrimento e provação. Sim, há uma conexão entre um conceito e outro. Ambos envolvem experiências difíceis e desafiadoras na vida de uma pessoa, mas há diferenças importantes entre eles, que nos obriga a realizarmos marcações relevantes para melhor entendimento.

O sofrimento como aflição severa, geralmente se refere a qualquer forma de dor, angústia, tristeza ou adversidade que uma pessoa enfrenta em sua vida. Pode ser físico, emocional, espiritual ou social e pode resultar de várias causas, como doença, perda, conflito, ou injustiça. O sofrimento é uma parte inevitável da experiência humana e é visto como um aspecto negativo da vida.

Por outro lado, as provações têm uma conotação mais específica e muitas vezes estão associadas a testes de fé, resistência ou caráter. As provações são geralmente vistas como desafios ou dificuldades que uma pessoa enfrenta com o propósito de fortalecer sua fé, desenvolver sua resiliência ou promover seu crescimento espiritual. Embora as provações possam envolver algum sofrimento, nem todo sofrimento é necessariamente uma prova.

Uma das principais semelhanças entre o sofrimento e as provações é que ambos podem ser experiências dolorosas e desafiadoras. Ambos podem testar a fé, a paciência e a resiliência de uma pessoa. Além disso, tanto o sofrimento quanto as provações podem fornecer oportunidades para o crescimento pessoal, autoconhecimento e transformação.

No entanto, uma diferença importante entre eles é a perspectiva subjacente. Enquanto o sofrimento é muitas vezes visto como algo negativo e indesejável, as provações são geralmente consideradas como algo que, apesar de difícil, pode ter um propósito ou significado mais profundo. As provações são entendidas como oportunidades para aprender, crescer e fortalecer-se, enquanto o sofrimento muitas vezes é visto como algo a ser evitado ou superado.

Em suma, enquanto o sofrimento é uma experiência mais ampla e genérica de dor e adversidade, as provações são desafios específicos que podem ter um propósito ou significado mais profundo para um indivíduo. Ambos podem ser difíceis de enfrentar, mas as provações são comumente percebidas como oportunidades para crescimento e desenvolvimento pessoal, como um fim em si mesma.

... e chega de sofrimento

Isso entendido, parece muito mais assertivo compreendermos que o caráter instrumental que tentamos emprestar ao sofrimento em si, está muito mais afeto à provação, essa sim uma circunstância que promove experimentação e crescimento. Ou seja, se é certo dizermos que Deus se utiliza de condições e circunstâncias para nos ensinar alguma coisa e promover amadurecimento, isso está muito mais ligado à provação, do que ao sofrimento ou às experiências de bem-estar como defendidas de lado a lado.

Sim, porque ao analisarmos mais de perto visão dos que entendem o sofrimento como instrumento determinante e eficaz, surgem questionamentos importantes. Se as aflições severas fossem de fato o principal motor do crescimento pessoal, poderíamos esperar que sociedades marcadas pelo alto grau de adversidade fossem também as mais virtuosas e evoluídas moralmente. No entanto, essa correlação nem sempre se verifica na prática. Mesmo em contextos de extrema privação e sofrimento, encontramos exemplos de comportamento moralmente questionável e falta de empatia, que flagram a impossibilidade de aplicação da relação inevitável de causa e efeito.

Por outro lado, os que argumentam que experiências positivas e bem-estar são igualmente capazes de promover o crescimento pessoal, enfrentam desafios quando confrontados com a realidade. Porque se tais condições fossem principais impulsionadores do crescimento pessoal, poderíamos esperar que os segmentos mais privilegiados da sociedade fossem também os mais virtuosos e altruístas. No entanto, essa não é necessariamente uma realidade experimentada, pois encontramos pessoas em ambientes de conforto e abundância, que demonstram falta de empatia e preocupação com o bem-estar do próximo, sem sequer compreender seu papel no mundo, vivendo única e exclusivamente para si mesmas.

Independentemente do que se acredita ou se deixa de acreditar, diante de conceitos tão próximos e de fronteiras tão tênues, é muito comum haver equívocos de compreensão e de afirmações. A questão nos é mesmo muito nebulosa. O intuito aqui, porém, longe de definir limites entre conceitos, é provocar-nos em exercícios de avaliação, que melhorem a mira na direção de profundas e compassivas conclusões. Porque diferentemente das acusações inclementes e cruéis que surgirem de variados e superficiais observadores, o que nos importa é acolher quem quer que seja, esteja sendo provado ou sofrendo por quaisquer consequências, por dever de ofício e misericórdia dos que são chamados ao amor matricial do Reino de Deus.



[1] Arquétipo é um padrão ou modelo universalmente reconhecido, seja de um personagem, uma situação, um símbolo ou um tema, que transcende culturas e épocas. Eles são frequentemente encontrados em mitos, contos de fadas, religiões e obras literárias, representando ideias, conceitos ou padrões de comportamento que são comuns à experiência humana. Em suma, um arquétipo é uma forma simbólica fundamental que evoca significados profundos e universais.

[2] John E. Hartley é autor e teólogo conhecido por seus estudos e comentários sobre o Antigo Testamento, especialmente o livro de Jó. Ele é reconhecido por sua contribuição acadêmica no campo da exegese bíblica e é autor de diversas obras que abordam temas teológicos e interpretações das Escrituras Sagradas.

[3] Viktor Frankl foi um neurologista, psiquiatra e sobrevivente do Holocausto. Ele é mais conhecido como o fundador da Logoterapia, uma abordagem psicoterapêutica centrada no sentido da vida. Frankl é autor de "Em Busca de Sentido", onde descreve suas experiências nos campos de concentração e explora a importância de encontrar significado mesmo em situações de extremo sofrimento.

[4] C.S. Lewis foi um escritor britânico, professor universitário e apologista cristão. Ele é conhecido principalmente por suas obras de ficção, como "As Crônicas de Nárnia", e por seus escritos teológicos, incluindo "O Problema do Sofrimento", onde aborda questões relacionadas ao sofrimento à luz da fé cristã. Lewis também foi um dos mais proeminentes defensores do cristianismo no século XX

[5] Resumo sobre os autores citados:

·         Rogers: Refere-se a Carl Rogers, um psicólogo humanista americano conhecido por sua abordagem centrada no cliente. Ele enfatizou a importância do autoconhecimento e do crescimento pessoal na psicoterapia.

·         Seligman: Refere-se a Martin Seligman, um psicólogo americano que é um dos fundadores da psicologia positiva. Ele defendeu a ideia de que o florescimento humano pode ser alcançado através do cultivo de emoções positivas, forças pessoais e relacionamentos significativos.

·         Schweitzer: Refere-se a Albert Schweitzer, um teólogo, filósofo e médico alemão conhecido por seu trabalho humanitário na África. Ele enfatizou a importância da compaixão e do serviço aos outros como caminhos para o crescimento espiritual.

·         Nouwen: Refere-se a Henri Nouwen, um teólogo católico e escritor conhecido por seus escritos sobre espiritualidade e vida interior. Ele destacou a importância da vulnerabilidade e do amor incondicional como elementos essenciais para o crescimento espiritual.

·         Confúcio: Refere-se a Confúcio, um filósofo chinês antigo cujos ensinamentos enfatizavam a importância da virtude, da sabedoria e da harmonia social para uma vida plena e significativa.

Cada um desses autores contribuiu de maneiras diferentes para a compreensão do sofrimento humano e ofereceu perspectivas únicas sobre como lidar com ele.

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