terça-feira, 30 de abril de 2024

Exercício 3 - O mal como subordinado?

Por Jânsen Leiros Jr.

 

 “ 6Num dia em que os filhos de Deus vieram apresentar-se perante o Senhor, veio também Satanás entre eles.7 Então, perguntou o Senhor a Satanás: Donde vens? Satanás respondeu ao Senhor e disse: De rodear a terra e passear por ela.8 Perguntou ainda o Senhor a Satanás: Observaste o meu servo Jó? Porque ninguém há na terra semelhante a ele, homem íntegro e reto, temente a Deus e que se desvia do mal.9 Então, respondeu Satanás ao Senhor: Porventura, Jó debalde teme a Deus?10 Acaso, não o cercaste com sebe, a ele, a sua casa e a tudo quanto tem? A obra de suas mãos abençoaste, e os seus bens se multiplicaram na terra.11 Estende, porém, a mão, e toca-lhe em tudo quanto tem, e verás se não blasfema contra ti na tua face.12 Disse o Senhor a Satanás: Eis que tudo quanto ele tem está em teu poder; somente contra ele não estendas a mão. E Satanás saiu da presença do Senhor.

Jó 1:6-12 

 

 

E satanás se apresenta a Deus entre seus filhos...  Como assim?

Presente no prólogo como uma espécie de explicação antecipada da natureza do sofrimento que Jó experimentará em breve, essa é, seguramente, uma das mais intrigantes e questionadas cenas bíblicas. O que satanás estava fazendo no céu? E para piorar, entre os filhos de Deus? Esta é uma pergunta que os alunos me fazem em quase todo início de estudos em Jó. Todavia, muito mais interessante do que a pergunta, são as teorias que elaboram ou tomam emprestadas, quando devolvo a questão à classe, incentivando que esbocem eles mesmos hipóteses plausíveis.

É claro que a presença de Satanás entre os filhos de Deus é um aspecto inquietante, que incitou diversas interpretações e teorias ao longo da história, e, obviamente, ainda incita. E é por isso que aqui precisaremos realizar um rápido mas necessário aprofundamento da questão, pois entendo que aquilo que concluirmos a respeito dessa intrigante questão, nos auxiliará bastante na compreensão do propósito primordial do livro.

Ampliando hipóteses

Para esse aprofundamento, um olhar multidisciplinar se faz necessário, para percebermos a variedade de ilações e teorias propostas, não apenas por teólogos, mas também por filósofos, sociólogos, historiadores e arqueólogos, que se debruçaram ou não sobre a presença de Satanás entre os filhos de Deus na narrativa de Jó, mas que, porém, sempre se ocupam em avaliar a dualidade concomitante do bem e do mal no cotidiano da vida humana. Esses olhares adjacentes poderão ampliar nosso campo de observação, melhorando nossa assertividade sobre a questão.

Interpretação Psicológica

Alguns psicólogos e estudiosos da mente humana sugerem que a figura de Satanás pode ser uma projeção dos medos e desafios internos de Jó. Nessa perspectiva, a presença de Satanás entre os filhos de Deus representaria os conflitos internos e as tentações que Jó enfrenta em sua jornada[1]. Satanás seria uma espécie de ameaça à manutenção dos ciclos de boas obras-recompensas, comum na crença à época.

Essa interpretação acerta ao pontuar a questão retributiva como pertinente ao conteúdo do livro. É essa, inclusive, a mecânica crida pelos amigos de Jó, como a forma de condução divina. Porém, ao categorizar Satanás como uma possível construção mental de Jó, esquece que o personagem não está presente na cena em questão, sendo muito mais uma circunstância que o atingirá, do que uma condição sobre a qual racionalizará diante dos fatos que o levarão ao sofrimento.

Interpretação Sociológica

Sociólogos e antropólogos podem abordar essa passagem como uma reflexão sobre as estruturas de poder e autoridade na sociedade humana. A presença de Satanás entre os filhos de Deus pode ser interpretada como uma metáfora para as forças malignas que permeiam as estruturas sociais e religiosas, desafiando a ordem estabelecida[2].

Outra abordagem bastante interessante, com generosas pitadas de atualidade. Ou não é verdade que o que não nos tem faltado ultimamente são lobos em peles de cordeiros? Porém, e de novo, a narrativa exclui Jó da cena em que Deus e satanás conversam; ele não a presenciou. O que significa que Jó não teria como empreender racionalização dos fatos que antecedem sua tragédia. Além disso, uma eventual metáfora de forças malignas infiltradas, conduziria Jó a um entendimento de que seu sofrimento parte de um descuido de Deus, em deixar que um ser maligno se imiscuísse em seus planos, prejudicando a perfeição de sua providência. O que logo após as tragédias, podemos perceber que não foi o pensamento de Jó. Deus deu, Deus tirou.  Para Jó, Deus seguia no controle, apesar dos infortúnios que lhe abateram.

Interpretação Histórica

Historiadores e arqueólogos podem analisar essa passagem à luz do contexto histórico e cultural em que foi escrita. Eles podem explorar como as crenças sobre seres espirituais e divindades eram compreendidas na antiguidade, e como essas visões influenciaram a narrativa de Jó[3].

Talvez essa seja uma abordagem mais potente em possibilidades, uma vez que a análise contextual e contemporânea situa, no tempo, o conceito vivenciado por pessoas de uma determinada época sobre o sagrado e suas interações com a humanidade. E no capítulo introdutório de Jó, o que no capítulo anterior chamamos de moldura, fica claro que a narrativa se utiliza da crença vigente sobre tudo aquilo que apresenta, não sendo novidade, nem para quem escrevia, e nem para quem o ouviria, o fato de que Satanás estaria, quase que obviamente, entre os filhos de Deus que lhes prestam contas.

Interpretação Filosófica

Filósofos podem oferecer uma análise metafísica sobre a presença de Satanás entre os filhos de Deus. Eles podem explorar questões sobre o livre-arbítrio, o problema do mal e a natureza da dualidade entre o bem e o mal, buscando entender o papel de Satanás dentro desse contexto[4].

Essa é também uma abordagem bastante interessante, se considerarmos o problema do mal como um tema tratado no livro de Jó, ainda que não o tenha como questão central da narrativa. Também os amigos de Jó trabalharão hipóteses ligadas a esta dualidade, o que de alguma forma abre espaço para uma argumentação filosófica que pode ser significativa. A questão do livre-arbítrio, no entanto, não se aplicaria aqui de forma alguma, uma vez que aquilo que se abate sobre o personagem central da narrativa, não é consequência de qualquer atitude ou escolha sua, seja equivocada ou não. Seu sofrimento não é efeito cuja causa esteja em Jó, ou lhe seja responsabilidade direta ou indireta.

Interpretação Teológica Clássica

Muitos teólogos tradicionais interpretam essa passagem como uma manifestação da soberania de Deus sobre todas as criaturas, incluindo Satanás. Segundo essa visão, Satanás comparece perante Deus como parte de uma corte celestial, onde os seres espirituais prestam contas de suas ações[5].

A abordagem teológica parte de uma base consistente e pertinente em relação ao conteúdo da introdução. Colocando o mal como um subordinado de Deus, tanto o leitor quanto o ouvinte de Jó se deparam com o que poderemos chamar de um salto definitivo na revelação de Deus ao mundo. Jeová já não é mais um dentre tantos outros deuses. É como se a compreensão sobre Ele ganhasse em profundidade e sustentação, pois um dos maiores enigmas universais, se tornava totalmente simples e claro; o Deus único e soberano está no comando de tudo!

A cena em que Satanás conversa com o Senhor, nos leva a refletir sobre a soberania de Deus sobre todo o universo, inclusive sobre seres espirituais, quer sejam eles bons, quer sejam maus. A presença de Satanás diante de Deus pode ser vista como parte de um grande plano divino, onde até mesmo o adversário é submetido à autoridade e ao governo de Deus. O que para muitos, eu entendo, seja uma compreensão diferente, nova e extremamente desafiadora. Ou seja, a narrativa do livro de Jó nos mostra, desde o seu início, que Satanás não está fora do alcance do conhecimento e da providência divina, ainda que apenas e tão somente como um agente, estando totalmente ao dispor da vontade do Criador.

A interação entre Deus e Satanás nesse episódio nos leva a considerar a profundidade da soberania divina e a complexidade das relações entre o bem e o mal, entre o divino e o maligno, que não se interpõem como inimigos que se confrontem diametralmente, sendo, contudo, excludentes entre si. Essa passagem desafia nossa compreensão e nos convida a contemplar a sabedoria e o poder de Deus, ambos muito além dos limites humanos.

Equilibrando as opiniões

Ora, o entendimento teológico mais equilibrado e comumente aceito sobre o encontro entre Deus e Satanás narrado em Jó 1:6-12, portanto, é que o evento se dá em um contexto evidente de absoluta soberania sobre todas as coisas criadas; todos prestam contas a Deus. Nesse encontro, Satanás é descrito como vindo entre os filhos de Deus para apresentar-se diante do Senhor, a quem deve prestar contas de tudo, sempre. Ele não se manda! Voltaremos a este nó mais adiante.

De acordo com essa interpretação, Satanás não está presente diante de Deus como um igual ou como alguém que tem autoridade independente, mas sim como um criado por Deus e submetido à sua soberania. A presença de Satanás nesta corte celestial sugere que ele é apenas uma das muitas criaturas que estão submissas a Deus.

O Senhor, portanto, tem poder sobre todas as coisas, incluindo Satanás e os poderes do mal. E embora o diabo aja de forma malévola dispondo-se a desviar homens do caminho da justiça, ele não está livre do controle ou da autoridade de Deus. Assim, o encontro entre Deus e Satanás na passagem de Jó é visto como parte do plano soberano de Deus para exercitar a fé e a fidelidade de Jó, e não como uma indicação de que Satanás tenha poder ou autoridade em si mesmo sobre o que quer que seja. Logo, Jó só passou pelo que passou, porque Deus quis. Sua providência sempre esteve no controle. O Senhor sabia. Nós sabíamos. Somente o provado Jó que não. Mas até isso também era providencial.

 



[1] Na psicologia e nos estudos da mente humana, diversas abordagens podem ser aplicadas para compreender a figura de Satanás como uma projeção dos medos e desafios internos de Jó. Embora não haja consenso absoluto entre os psicólogos sobre essa interpretação específica, alguns estudiosos e teóricos têm explorado temas relacionados à psicologia da religião, à psicanálise e à psicologia do desenvolvimento para oferecer insights sobre a natureza dessa perspectiva. Aqui estão alguns exemplos de psicólogos e suas obras que abordam questões semelhantes:

1.       Sigmund Freud: O fundador da psicanálise, Sigmund Freud, explorou extensivamente os temas do inconsciente, da sexualidade e da religião em sua obra. Embora não tenha se concentrado especificamente em Jó, suas teorias sobre os mecanismos de defesa, o complexo de Édipo e a interpretação dos sonhos podem oferecer insights sobre como os conflitos internos podem se manifestar em formas simbólicas, como a figura de Satanás.

2.       Carl Gustav Jung: Jung, outro influente psicólogo e fundador da psicologia analítica, desenvolveu conceitos como o inconsciente coletivo, os arquétipos e a individuação. Em sua obra "Psychology and Religion", Jung discute a natureza dos símbolos religiosos e sua relevância para a psique humana. Ele poderia oferecer uma interpretação mais simbólica da presença de Satanás entre os filhos de Deus, destacando-o como um arquétipo do mal presente na psique de Jó.

3.       Erich Neumann: Neumann, discípulo de Jung, expandiu as ideias do mestre sobre o inconsciente coletivo e os arquétipos. Em obras como "The Great Mother" e "Depth Psychology and a New Ethic", ele explora os temas da religião, mitologia e psicologia em relação ao desenvolvimento humano e à sociedade. Embora não tenha tratado especificamente do livro de Jó, suas teorias sobre os complexos e símbolos podem ser aplicadas para entender a presença de Satanás como uma expressão dos conflitos internos de Jó.

Esses psicólogos e seus trabalhos oferecem uma variedade de perspectivas e ferramentas conceituais para analisar a complexidade da mente humana e sua relação com temas religiosos e espirituais, incluindo a presença de figuras como Satanás no contexto bíblico.

[2] Vários sociólogos e antropólogos oferecem interpretações sobre questões relacionadas ao poder, autoridade e religião, que podem ser aplicadas à passagem de Jó 1:6-12. Embora nem todos tenham abordado especificamente essa passagem bíblica, suas teorias e análises sobre estruturas sociais e religiosas podem oferecer insights relevantes. Aqui estão alguns exemplos de sociólogos e suas obras que discutem temas semelhantes:

1.       Max Weber: Weber é conhecido por suas análises sobre a relação entre religião e sociedade. Em sua obra "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo", ele explora como as crenças religiosas influenciam o comportamento econômico e social. Embora não tenha abordado diretamente a figura de Satanás, suas ideias sobre autoridade e poder na religião podem ser aplicadas para entender a presença de forças malignas desafiando a ordem estabelecida.

2.       Émile Durkheim: Durkheim é um dos fundadores da sociologia moderna e estudou extensivamente a relação entre religião e sociedade em obras como "As Formas Elementares da Vida Religiosa". Ele argumenta que a religião desempenha um papel fundamental na coesão social e na manutenção da ordem moral. Sua análise das estruturas sociais e rituais religiosos pode oferecer uma perspectiva sobre como a presença de Satanás entre os filhos de Deus reflete as tensões e desafios dentro da ordem social.

3.       Pierre Bourdieu: Bourdieu é conhecido por suas teorias sobre poder, capital cultural e reprodução social. Em obras como "A Distinção" e "Esboço de uma Teoria da Prática", ele examina como as hierarquias sociais são mantidas e reproduzidas por meio de práticas culturais e simbólicas. Embora não tenha se concentrado diretamente em temas religiosos, suas ideias sobre dominação simbólica e lutas de poder podem ser aplicadas para entender a presença de forças malignas desafiando as estruturas de autoridade na passagem de Jó.

Esses sociólogos e suas obras oferecem uma variedade de perspectivas sobre como as estruturas sociais e religiosas podem influenciar e serem influenciadas por questões de poder, autoridade e moralidade, como retratado na passagem de Jó 1:6-12.

[3] Historiadores e arqueólogos frequentemente abordam a interpretação de passagens bíblicas à luz de seus contextos históricos e culturais. Embora nem todos tenham se concentrado especificamente na passagem de Jó 1:6-12, suas análises sobre o mundo antigo podem fornecer insights relevantes. Aqui estão alguns exemplos de historiadores e arqueólogos e suas respectivas obras que poderiam contribuir para essa abordagem:

1.       William Foxwell Albright: Albright foi um arqueólogo e biblista conhecido por suas contribuições para a compreensão do mundo bíblico por meio de evidências arqueológicas. Em obras como "Arqueologia e Religião de Israel" e "De Abraão a Paulo", ele examina como as crenças religiosas e as práticas espirituais eram percebidas e influenciavam a vida cotidiana nas sociedades antigas do Oriente Médio.

2.       Karen Armstrong: Armstrong é uma historiadora das religiões e autora de várias obras sobre o judaísmo, cristianismo e islamismo. Em livros como "Uma História de Deus" e "O Grande Relatório", ela explora as origens e evolução das crenças religiosas ao longo da história, oferecendo insights sobre como as visões de seres espirituais eram entendidas e interpretadas em diferentes contextos culturais.

3.       Roland de Vaux: De Vaux foi um arqueólogo francês e especialista em estudos do Antigo Testamento. Sua obra mais conhecida, "Instituições de Israel no Antigo Testamento", oferece uma análise detalhada das instituições sociais, religiosas e políticas do antigo Israel, fornecendo contexto histórico para a compreensão das narrativas bíblicas, incluindo a história de Jó.

4.       F. F. Bruce: Bruce foi um estudioso do Novo Testamento e historiador do cristianismo primitivo. Em obras como "Jesus e os Manuscritos do Mar Morto" e "A Mensagem dos Manuscritos do Mar Morto", ele investiga as origens do cristianismo e sua relação com o judaísmo do Segundo Templo, oferecendo insights sobre como as crenças e práticas religiosas eram vivenciadas e interpretadas no contexto do mundo antigo.

Esses historiadores e arqueólogos oferecem uma variedade de perspectivas sobre o contexto histórico e cultural em que foram escritas as narrativas bíblicas, incluindo a passagem de Jó 1:6-12. Suas obras podem fornecer insights valiosos sobre como as crenças sobre seres espirituais e divindades eram compreendidas e interpretadas nas sociedades antigas.

[4] Vários filósofos ao longo da história abordaram questões relacionadas ao livre-arbítrio, ao problema do mal e à dualidade entre o bem e o mal, oferecendo insights sobre o papel de Satanás dentro desse contexto. Aqui estão alguns exemplos de filósofos e suas obras que poderiam contribuir para essa análise:

1.       Agostinho de Hipona: Agostinho, em obras como "Confissões" e "A Cidade de Deus", discute extensivamente sobre o livre-arbítrio humano, o problema do mal e a natureza do diabo. Ele desenvolve a ideia de que o mal é a privação do bem e explora como as escolhas humanas podem ser influenciadas pela tentação demoníaca.

2.       Tomás de Aquino: O trabalho de Aquino, especialmente em sua "Suma Teológica", aborda questões metafísicas relacionadas ao livre-arbítrio e ao mal, oferecendo uma análise sistemática da natureza do pecado e da queda do diabo. Ele argumenta sobre a existência de uma ordem divina que inclui tanto o bem quanto o mal, e discute o papel de Satanás nessa ordem.

3.       John Milton: Embora não seja estritamente um filósofo, a obra de Milton, "Paraíso Perdido", é uma epopeia que explora profundamente questões de livre-arbítrio, tentação e queda. O poema apresenta Satanás como um personagem complexo que desafia as concepções tradicionais do mal, fornecendo uma visão literária das questões metafísicas relacionadas ao diabo.

4.       Arthur Schopenhauer: Schopenhauer, em obras como "O Mundo como Vontade e Representação", oferece uma análise filosófica do mal como uma força inerente à natureza humana e ao universo. Ele discute como a vontade humana pode ser influenciada por impulsos irracionais e egoístas, refletindo sobre a natureza do pecado e da tentação.

Esses filósofos e suas obras fornecem diferentes perspectivas sobre o papel de Satanás dentro do contexto metafísico do livre-arbítrio, do problema do mal e da dualidade entre o bem e o mal. Suas análises podem ajudar a compreender as complexidades envolvidas na presença de Satanás entre os filhos de Deus na narrativa bíblica de Jó

 

[5] Essa interpretação da passagem de Jó 1:6-12 como uma manifestação da soberania de Deus sobre todas as criaturas, incluindo Satanás, é comum entre muitos teólogos tradicionais. Aqui estão alguns exemplos de teólogos e suas obras que sustentam essa visão:

1.       Orígenes: Este teólogo cristão do período patrístico, em obras como "Contra Celsum" e "De Principiis", enfatiza a supremacia de Deus sobre todas as coisas, incluindo os seres espirituais. Ele defende a ideia de que mesmo o mal é parte do plano divino e serve aos propósitos de Deus.

2.       Anselmo de Cantuária: Em suas obras, como "Proslogion" e "Cur Deus Homo" (Por que Deus se fez homem), Anselmo discute a soberania divina e a relação entre o bem e o mal, argumentando que Deus é a fonte suprema de todo o ser, e que o mal, incluindo a presença de Satanás, está subordinado à vontade divina. Ele enfatiza a necessidade de compreender o plano divino mesmo diante das aparências do mal no mundo.

3.       Martinho Lutero: Lutero, em seus comentários sobre Jó e em outras obras, enfatiza a doutrina da providência divina e a submissão de todas as criaturas à vontade de Deus. Ele argumenta que mesmo o diabo está sob o controle de Deus e é usado por ele para realizar seus propósitos.

4.       João Calvino: Nos escritos de Calvino, como as "Institutas da Religião Cristã" e seus comentários sobre Jó, ele explora a soberania absoluta de Deus sobre todas as coisas, incluindo o mal. Calvino ensina que Deus governa soberanamente sobre o diabo e o utiliza para cumprir seus desígnios divinos.

Esses teólogos, juntamente com Agostinho e Tomás de Aquino, representam uma tradição teológica que enfatiza a soberania de Deus sobre todas as criaturas, incluindo Satanás, e defende a ideia de que mesmo o mal está subordinado aos propósitos divinos.

 

quarta-feira, 17 de abril de 2024

O Problema do Sofrimento - Parte 3; E chega de sofrimento

Por Jânsen Leiros Jr.

  

“...Embora os muitos avanços feitos no conhecimento, especialmente no campo da medicina, tenham aumentando a qualidade da vida humana, o sofrimento persiste. É possível dizer que o sofrimento tem aumentado entre os seres humanos em razão dos problemas globais que compõe a miséria humana. Por isso o livro de Jó ainda é relevante, porque Jó permanece como um exemplo da fé em Deus superando o mais severo sofrimento humano.

A mensagem do livro de Jó desempenha um papel vital na teologia do cânon. Ele modifica um entendimento doutrinário simplista, fatalista da retribuição que condena todos os que sofrem e louva todos os que prosperam a despeito da integridade moral deles. Eu acredito que o relato de Jó inspirou Isaías de tal modo que Jó serviu como um dos modelos de Isaías ao retratar o Servo Sofredor.”

 

Comentários do Antigo Testamento – Jó, de John E. Hartley © 2023, Editora Cultura Cristã; Prefácio do Autor; pág. 9

Explorar o tema do sofrimento humano é adentrar em um território vasto e complexo, onde as interações entre o indivíduo e o divino se entrelaçam em uma tapeçaria de reflexões profundas e desafios persistentes. Mesmo diante dos avanços extraordinários da ciência e da medicina, o sofrimento persiste como uma realidade inegável, marcando a jornada humana com suas dores e questionamentos.

No âmago dessa discussão, encontra-se o livro de Jó, um texto antigo que ecoa através dos séculos como um testemunho da fé diante da adversidade. Jó não é apenas um personagem bíblico, mas um arquétipo[1] da experiência humana diante do sofrimento. Sua história desafia concepções simplistas de retribuição divina, convidando-nos a mergulhar nas profundezas do significado do sofrimento e da fé.

Os comentários de John E. Hartley[2] sobre o papel de Jó na teologia oferecem insights valiosos sobre a mensagem atemporal desse texto. Jó não é apenas um exemplo de integridade moral, mas um símbolo de resistência diante das provações da vida. Sua história ressoa em cada um de nós, confrontando-nos com a complexidade do sofrimento humano e a busca inquietante por respostas diante do divino.

Ao nos aprofundarmos na discussão sobre o papel do sofrimento na sociedade, somos confrontados com uma miríade de perspectivas. De um lado, há aqueles que veem o sofrimento como um catalisador essencial para o crescimento pessoal e espiritual. Pensadores como Viktor Frankl[3] e C.S. Lewis[4] destacam a capacidade do sofrimento de nos conduzir a uma compreensão mais profunda de nós mesmos e do mundo ao nosso redor.

Por outro lado, surgem vozes que questionam a necessidade do sofrimento como um meio de crescimento. Rogers, Seligman, Schweitzer, Nouwen e Confúcio[5] oferecem visões que enfatizam a importância do autoconhecimento, da compaixão, do amor e da sabedoria como caminhos alternativos para o desenvolvimento pessoal e espiritual.

Diante dessa diversidade de perspectivas, somos desafiados a adotar uma abordagem mais holística e integrativa. Reconhecer a complexidade do sofrimento humano implica aceitar que não há respostas simples ou soluções definitivas. A jornada rumo à realização pessoal e espiritual é marcada por um equilíbrio delicado entre enfrentar os desafios com coragem e cultivar momentos de gratidão e apreciação pelas experiências positivas da vida.

Portanto, convido você a se aventurar por esse território de reflexão e descoberta, explorando as múltiplas dimensões do sofrimento humano e seu papel na jornada rumo à plenitude e à realização. Ao fazer isso, estaremos não apenas expandindo nossos horizontes intelectuais, mas também enriquecendo nossa compreensão da condição humana e da busca pelo significado na vida.

O sofrimento como castigo divino

Nos tempos de Jó, o entendimento predominante afirmava que o sofrimento era um sintoma de reprovação divina pelo comportamento moral de um indivíduo ou de toda uma comunidade. Esse conceito estava enraizado na ideia de retribuição, onde o sucesso e a prosperidade eram vistos como sinais do favor de Deus, enquanto o sofrimento e a adversidade eram interpretados como castigo pelos pecados cometidos. Ainda hoje tal entendimento transita velado por diversas comunidades religiosas, infelizmente, servindo de mote acusatório, ou incentivo a enaltecimentos infundados.

No livro de Jó, esse pensamento é confrontado de maneira vigorosa. Jó, inicialmente retratado como um homem justo e íntegro, é subitamente atingido por uma série de calamidades: ele perde seus filhos, sua riqueza e sua saúde, levando sua vida à ruína completa. Essa série de tragédias é interpretada por seus amigos como evidência de que Jó deve ter cometido algum pecado grave para merecer tal punição divina.

Os amigos de Jó, Elifaz, Bildade e Zofar, representam essa visão tradicional da retribuição divina. Eles argumentam repetidamente que o sofrimento de Jó só pode ser explicado como consequência de sua própria culpa e pecado. No entanto, Jó refuta veementemente essas acusações, defendendo sua inocência e recusando-se a admitir qualquer culpa que justificasse seu sofrimento.

Ao longo do diálogo entre Jó e seus amigos, fica claro que essa interpretação simplista do sofrimento é insuficiente para explicar a complexidade da experiência humana. Jó desafia seus amigos a questionar suas próprias concepções sobre o propósito do sofrimento e a natureza da justiça divina. Ele argumenta que o sofrimento não pode ser reduzido a uma simples equação de causa e efeito, mas é parte integrante da condição humana, independentemente do comportamento moral individual. E há um outro fator que influencia a inflexível compreensão da realidade por parte dos amigos de Jó; o receio de um eventual semelhante experiência em suas próprias vidas. Mas falaremos disso quando analisarmos seus discursos mais adiante.

Assim, o livro de Jó oferece uma poderosa crítica à ideia de que o sofrimento é sempre um sinal de reprovação divina. Ele nos convida a considerar a possibilidade de que o sofrimento faz parte de um mistério mais amplo, além da compreensão humana, e que a justiça divina pode transcender nossas noções limitadas de mérito e culpa. Essa reflexão desafia não apenas os personagens do livro, mas também seus leitores ao longo dos séculos a repensar concepções sobre o sofrimento e a fé, com acolhimento e boa-vontade.

Sofrimento, provação e muita confusão

É muito comum identificarmos em ministrações sobre o livro de Jó, a confusão que muita gente faz entre sofrimento e provação. Sim, há uma conexão entre um conceito e outro. Ambos envolvem experiências difíceis e desafiadoras na vida de uma pessoa, mas há diferenças importantes entre eles, que nos obriga a realizarmos marcações relevantes para melhor entendimento.

O sofrimento como aflição severa, geralmente se refere a qualquer forma de dor, angústia, tristeza ou adversidade que uma pessoa enfrenta em sua vida. Pode ser físico, emocional, espiritual ou social e pode resultar de várias causas, como doença, perda, conflito, ou injustiça. O sofrimento é uma parte inevitável da experiência humana e é visto como um aspecto negativo da vida.

Por outro lado, as provações têm uma conotação mais específica e muitas vezes estão associadas a testes de fé, resistência ou caráter. As provações são geralmente vistas como desafios ou dificuldades que uma pessoa enfrenta com o propósito de fortalecer sua fé, desenvolver sua resiliência ou promover seu crescimento espiritual. Embora as provações possam envolver algum sofrimento, nem todo sofrimento é necessariamente uma prova.

Uma das principais semelhanças entre o sofrimento e as provações é que ambos podem ser experiências dolorosas e desafiadoras. Ambos podem testar a fé, a paciência e a resiliência de uma pessoa. Além disso, tanto o sofrimento quanto as provações podem fornecer oportunidades para o crescimento pessoal, autoconhecimento e transformação.

No entanto, uma diferença importante entre eles é a perspectiva subjacente. Enquanto o sofrimento é muitas vezes visto como algo negativo e indesejável, as provações são geralmente consideradas como algo que, apesar de difícil, pode ter um propósito ou significado mais profundo. As provações são entendidas como oportunidades para aprender, crescer e fortalecer-se, enquanto o sofrimento muitas vezes é visto como algo a ser evitado ou superado.

Em suma, enquanto o sofrimento é uma experiência mais ampla e genérica de dor e adversidade, as provações são desafios específicos que podem ter um propósito ou significado mais profundo para um indivíduo. Ambos podem ser difíceis de enfrentar, mas as provações são comumente percebidas como oportunidades para crescimento e desenvolvimento pessoal, como um fim em si mesma.

... e chega de sofrimento

Isso entendido, parece muito mais assertivo compreendermos que o caráter instrumental que tentamos emprestar ao sofrimento em si, está muito mais afeto à provação, essa sim uma circunstância que promove experimentação e crescimento. Ou seja, se é certo dizermos que Deus se utiliza de condições e circunstâncias para nos ensinar alguma coisa e promover amadurecimento, isso está muito mais ligado à provação, do que ao sofrimento ou às experiências de bem-estar como defendidas de lado a lado.

Sim, porque ao analisarmos mais de perto visão dos que entendem o sofrimento como instrumento determinante e eficaz, surgem questionamentos importantes. Se as aflições severas fossem de fato o principal motor do crescimento pessoal, poderíamos esperar que sociedades marcadas pelo alto grau de adversidade fossem também as mais virtuosas e evoluídas moralmente. No entanto, essa correlação nem sempre se verifica na prática. Mesmo em contextos de extrema privação e sofrimento, encontramos exemplos de comportamento moralmente questionável e falta de empatia, que flagram a impossibilidade de aplicação da relação inevitável de causa e efeito.

Por outro lado, os que argumentam que experiências positivas e bem-estar são igualmente capazes de promover o crescimento pessoal, enfrentam desafios quando confrontados com a realidade. Porque se tais condições fossem principais impulsionadores do crescimento pessoal, poderíamos esperar que os segmentos mais privilegiados da sociedade fossem também os mais virtuosos e altruístas. No entanto, essa não é necessariamente uma realidade experimentada, pois encontramos pessoas em ambientes de conforto e abundância, que demonstram falta de empatia e preocupação com o bem-estar do próximo, sem sequer compreender seu papel no mundo, vivendo única e exclusivamente para si mesmas.

Independentemente do que se acredita ou se deixa de acreditar, diante de conceitos tão próximos e de fronteiras tão tênues, é muito comum haver equívocos de compreensão e de afirmações. A questão nos é mesmo muito nebulosa. O intuito aqui, porém, longe de definir limites entre conceitos, é provocar-nos em exercícios de avaliação, que melhorem a mira na direção de profundas e compassivas conclusões. Porque diferentemente das acusações inclementes e cruéis que surgirem de variados e superficiais observadores, o que nos importa é acolher quem quer que seja, esteja sendo provado ou sofrendo por quaisquer consequências, por dever de ofício e misericórdia dos que são chamados ao amor matricial do Reino de Deus.



[1] Arquétipo é um padrão ou modelo universalmente reconhecido, seja de um personagem, uma situação, um símbolo ou um tema, que transcende culturas e épocas. Eles são frequentemente encontrados em mitos, contos de fadas, religiões e obras literárias, representando ideias, conceitos ou padrões de comportamento que são comuns à experiência humana. Em suma, um arquétipo é uma forma simbólica fundamental que evoca significados profundos e universais.

[2] John E. Hartley é autor e teólogo conhecido por seus estudos e comentários sobre o Antigo Testamento, especialmente o livro de Jó. Ele é reconhecido por sua contribuição acadêmica no campo da exegese bíblica e é autor de diversas obras que abordam temas teológicos e interpretações das Escrituras Sagradas.

[3] Viktor Frankl foi um neurologista, psiquiatra e sobrevivente do Holocausto. Ele é mais conhecido como o fundador da Logoterapia, uma abordagem psicoterapêutica centrada no sentido da vida. Frankl é autor de "Em Busca de Sentido", onde descreve suas experiências nos campos de concentração e explora a importância de encontrar significado mesmo em situações de extremo sofrimento.

[4] C.S. Lewis foi um escritor britânico, professor universitário e apologista cristão. Ele é conhecido principalmente por suas obras de ficção, como "As Crônicas de Nárnia", e por seus escritos teológicos, incluindo "O Problema do Sofrimento", onde aborda questões relacionadas ao sofrimento à luz da fé cristã. Lewis também foi um dos mais proeminentes defensores do cristianismo no século XX

[5] Resumo sobre os autores citados:

·         Rogers: Refere-se a Carl Rogers, um psicólogo humanista americano conhecido por sua abordagem centrada no cliente. Ele enfatizou a importância do autoconhecimento e do crescimento pessoal na psicoterapia.

·         Seligman: Refere-se a Martin Seligman, um psicólogo americano que é um dos fundadores da psicologia positiva. Ele defendeu a ideia de que o florescimento humano pode ser alcançado através do cultivo de emoções positivas, forças pessoais e relacionamentos significativos.

·         Schweitzer: Refere-se a Albert Schweitzer, um teólogo, filósofo e médico alemão conhecido por seu trabalho humanitário na África. Ele enfatizou a importância da compaixão e do serviço aos outros como caminhos para o crescimento espiritual.

·         Nouwen: Refere-se a Henri Nouwen, um teólogo católico e escritor conhecido por seus escritos sobre espiritualidade e vida interior. Ele destacou a importância da vulnerabilidade e do amor incondicional como elementos essenciais para o crescimento espiritual.

·         Confúcio: Refere-se a Confúcio, um filósofo chinês antigo cujos ensinamentos enfatizavam a importância da virtude, da sabedoria e da harmonia social para uma vida plena e significativa.

Cada um desses autores contribuiu de maneiras diferentes para a compreensão do sofrimento humano e ofereceu perspectivas únicas sobre como lidar com ele.

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terça-feira, 9 de abril de 2024

Exercício 2 - Prólogos, epílogos e molduras. Um capítulo à parte

 Por Jânsen Leiros Jr.

 

“O relato épico é composto num belo e simples estilo compacto típico da prosa hebraica antiga. As cenas muito curtas são marcadas por alguns toques ousados. As narrativas e os discursos são uniformes; desse modo, uma pequena discrepância na fraseologia produz o máximo efeito. O número de personagens em cada cena é limitado, geralmente a dois. A ação é rápida e definitiva. O diálogo entre os personagens é direto e conciso. A caracterização é desenvolvida por meio de discursos e de uma resposta da pessoa a uma ação. Padrões simétricos contribuem para as cenas concisas. Os números são empregados para expressar enorme vantagem; a sequência de três, sete e dez tem grande significado. A absoluta simplicidade da narrativa contrasta visivelmente com a profundidade do problema tratado. Consequentemente, o relato, embora simples, cativa a imaginação do público. Ele tem um notável encanto que transcende eras e culturas.

Comentários do Antigo Testamento: Jó / John E. Hartley; tradução

Edmilson Francisco Ribeiro. – São Paulo: Cultura Cristã, 2023; pág. 99 

 

 Antes de seguirmos com os exercícios no Livro de Jó, que é a proposta principal do nosso trabalho, precisamos nos deter um pouco sobre o estilo literário[1] utilizado na narrativa do livro. Negligenciar essa tarefa neste início de caminhada poderia comprometer seriamente nossa compreensão sobre determinadas passagens, principalmente as do prólogo[2], que compreende os capítulos 1 e 2 do livro. Essas passagens não só explicam os acontecimentos que se sucedem na vida de Jó, como também, e principalmente, ancoram a verdade por trás do sofrimento que se abate sobre o personagem central da trama.

A composição do texto do livro se utiliza de um estilo literário antigo, que resume as causas e circunstâncias que sustentam a história que se desenrola no miolo da narrativa. Cenas curtas, diálogos rápidos, realidade controversa e poucos personagens envolvidos, produzem um relato rápido, que facilita a memorização e a compreensão dos porquês que naturalmente surgirão ao longo da história a ser desenvolvida. O mesmo estilo literário retorna no epílogo[3] do livro, no capítulo 42:7-17, que encerra a história de maneira rápida e sem qualquer aviso prévio. Ou seja, as narrativas que emolduram o volume central do livro de Jó aceleram o início e apressam o seu fim, como que dizendo, resumidamente, será por isso e por isso foi.

Mas em que exatamente o uso desse estilo influencia a compreensão do prólogo? Em tudo[4]. No caso da narrativa de Jó, o estilo projeta uma contundente e inquietante desimportância à realidade objetiva de sua introdução. Ou seja, o que importou ao autor do livro foi estabelecer as circunstâncias iniciais da história, e não a discussão quanto à pertinência das cenas que definiu como necessárias para ambientar o seu relato. Talvez um exemplo concreto nos ajude numa melhor compreensão. Vamos a ele.

“Havia um coelho nas regiões desérticas do sudoeste da América do Norte, que por saudável e veloz, realizava corridas intermináveis de um lado ao outro, sempre à procura de comida e água. No dia em que a coruja, a mais observadora das aves, assistia a mais uma das velozes corridas do coelho, chamou-lhe atenção e disse: "Cuidado, coelho. Você é rápido, sem dúvida, mas muito imprudente. Vez por outra chega muito perto do desfiladeiro, já observei. Procure correr longe da beirada do caminho." O coelho, no entanto, longe de ser grato ao aviso da coruja, e confiante de que sabia bem o que fazia, seguiu correndo por onde achava melhor. Não se pôs o sol, antes que o coelho, por teimosia, caísse no precipício.

Ora, a família do coelho, doída pela perda de seu membro mais rápido, iniciou uma investigação sobre as possíveis causas que o levaram a cair naquele abismo. Teria sido a falta de uma pavimentação apropriada? Será, talvez, que a colocação de uma grade de proteção não tivesse evitado sua queda? Poderia ser a qualidade da água que bebera naquele dia, a causa de um desconforto qualquer que prejudicasse sua concentração? Pedindo a palavra, o leão da montanha, declara ter certeza de que o coelho se atirou do precipício, porque provavelmente tentara escapar das consequências de alguma arte que fizera dias antes do acontecido...”. Quem quiser prosseguir escrevendo a historinha, sinta-se à vontade.

Notem que a partir do segundo parágrafo da narrativa acima, os envolvidos iniciam uma especulação perturbadora sobre as causas da morte do coelho, sem sequer desconfiarem do que realmente aconteceu. Mas você e eu, que fomos testemunhas do que se passou no primeiro parágrafo, sabemos muito bem porque o coelho acabou se precipitando no penhasco. Ora, e o que tem a ver isso com a declarada desimportância da realidade objetiva[5]? Tem que, apesar de sabermos obviamente que o diálogo entre um coelho e uma coruja é impossível, posto que nem um nem outro é capaz de falar, nos envolvemos com a narrativa ao ponto de acompanhar, não só o que aconteceria com o coelho teimoso, mas quase que poderíamos esticar a narrativa, sobre os desdobramentos das investigações à cerca da causa-morte do pomposo bichinho. E isso é o que encanta no estilo literário da narrativa. O padrão utilizado nos cativa e envolve.

Além do magnetismo que o estilo exerce sobre nós, perceba que mesmo sem tirar as vistas da linha onde se encontra nesse momento, você é plenamente capaz de repetir toda a história contida no primeiro parágrafo da fabula improvisada acima, que relata a cena do diálogo entre o coelho e a coruja e o desfecho de sua teimosia. Mas com toda certeza, o desenrolar da história que se inicia a partir do segundo parágrafo, já exige ao menos uma olhadela lá para cima, para que o conteúdo seja lembrado. Está aí o poder assimilador que a moldura do texto exerce sobre o leitor, ou o ouvinte da narrativa. Aliás, muito mais sobre o ouvinte. Mas isso é assunto para nos aprofundarmos adiante, não muito depois daqui.

Retornando ao texto bíblico, mesmo que uma pessoa minimamente atenta jamais tenha lido Jó por inteiro, se alguém lhe pedir um resumo da história narrada no livro, seguramente poderá resumir que Jó era um homem bom e temente a Deus, que perdeu tudo o que tinha e foi coberto de doenças, para ser provado ao diabo, que ele amava Deus sinceramente e sem interesse. E no final, Deus recompensou sua fidelidade devolvendo tudo o que havia perdido, dez vezes mais; e acabou o livro de Jó.

E já que agora entendemos perfeitamente o papel e a relevância do estilo literário no prólogo da narrativa de Jó, que tal retornarmos aos detalhes do texto, seguindo efetivamente com nossos exercícios espirituais? O meu desejo sincero, é que a busca diligente pela compreensão nos leve a desvendar os mistérios mais profundos desse livro inspirador.



[1] Os estilos literários referem-se às características específicas que definem a forma como um texto é escrito e organizado. Existem vários estilos literários, como narrativo, descritivo, lírico, dramático, entre outros, cada um com suas próprias características distintas.

No livro de Jó, o estilo literário predominante é o narrativo. A história de Jó é contada em forma de prosa, com uma sequência de eventos que ocorrem ao longo do tempo. Há diálogos entre os personagens, descrições de cenários e situações, além de uma narrativa que avança de forma linear, apresentando os desafios e as provações enfrentadas pelo protagonista.

[2] Um prólogo em literatura é uma seção introdutória de uma obra, seja ela um livro, uma peça teatral, um filme, etc. Ele geralmente precede o corpo principal da obra e serve para fornecer informações adicionais ao leitor, como contexto histórico, introdução aos personagens, explicação do cenário, ou qualquer outra informação relevante que ajude a situar o leitor na trama que está por vir. O prólogo muitas vezes estabelece o tom da obra e prepara o leitor para o que está por vir.

[3] Um epílogo é a parte de uma obra literária que vem após a conclusão da história principal e serve para oferecer um fechamento adicional, reflexões finais, ou para fornecer informações sobre o destino dos personagens após os eventos principais da trama. Geralmente, o epílogo oferece uma conclusão final à história e pode incluir reflexões sobre os temas abordados, lições aprendidas ou implicações futuras dos eventos narrados. Em resumo, é uma seção que complementa o desfecho da história principal e oferece um encerramento mais completo para o leitor.

[4] A escolha do estilo literário para o prólogo de uma obra pode ter uma influência significativa na forma como os leitores percebem e se envolvem com a história. O prólogo é a primeira impressão que os leitores têm da obra e, portanto, o estilo utilizado pode estabelecer o tom, criar expectativas e preparar o terreno para os eventos que se seguirão. Dependendo do estilo escolhido, o prólogo pode ser mais envolvente, emocionante, informativo ou misterioso, afetando assim a experiência geral de leitura e a interpretação dos temas e personagens apresentados.

[5] A realidade objetiva refere-se à existência independente dos objetos, eventos e fenômenos, independentemente de qualquer percepção ou interpretação subjetiva por parte de um observador. Em outras palavras, a realidade objetiva existe fora da mente individual e é considerada como sendo tangível e mensurável por meio de métodos científicos e observações empíricas. Isso significa que a realidade objetiva é consistente e independente da opinião, crença ou experiência pessoal de qualquer indivíduo. Por exemplo, o movimento dos planetas, as leis da física, eventos históricos documentados e os resultados de experimentos científicos são todos exemplos de realidade objetiva.