Por
Jânsen
Leiros Jr.
20 Então, Jó se levantou, rasgou o seu manto, rapou a cabeça e
lançou-se em terra e adorou;21 e disse: Nu saí do ventre de minha mãe e nu voltarei;
o Senhor o deu e o Senhor o tomou; bendito seja o nome
do Senhor!22 Em tudo isto Jó não pecou, nem atribuiu a Deus falta alguma.
Jó 1:13-22 - ARA
Reflexão sobre a Resiliência de Jó: Teologia
e Perseverança na Fé
Finalizando
nossa incursão pelo primeiro capítulo do Livro de Jó, chegamos à sequência
devastadora de calamidades que acometem nosso herói. Um homem íntegro e temente
a Deus, cujo testemunho a narrativa atribui ao próprio Criador, é subitamente
acometido por uma série de infortúnios devastadores, perdendo seus bens, seus
servos e, tragicamente, todos os seus filhos. Este trecho, que descreve as
calamidades que se abatem sobre Jó, serve como um prelúdio para a exploração
profunda dos temas centrais do livro: a natureza do sofrimento humano, a
justiça divina e a perseverança na fé. A reação de Jó a esses eventos, que
aponta para uma fé inabalável e uma submissão total à soberania de Deus, estabelece
o tom para as discussões teológicas subsequentes e completa a moldura que
enquadrará todo desenvolvimento do livro.
No
trecho que lemos acima, cada mensageiro que chega traz uma notícia pior que a
anterior, culminando em uma situação de completa angústia e luto, pelo tsunami
de tragédias que lhe são comunicadas. A reação de Jó a essas tragédias é
particularmente notável e merecerá uma análise aprofundada adiante. Antes, porém,
nos deteremos em uma análise que pode ser um tanto inusitada para alguns, mas
extremamente relevante para nossos estudos à frente.
A Pretensão Teológica da Narrativa das Tragédias em Série
A
estrutura narrativa das tragédias que se abatem sobre Jó pode ser entendida não
apenas como um relato dramático, mas como uma construção teológica intencional.
A sequência rápida e devastadora dos eventos, parece projetada para destacar a
reação imediata e instintiva de Jó, sublinhando a natureza intuitiva e
devocional de sua fé. Além disso, essa estrutura narrativa também serve para
evidenciar a inocência de Jó, esclarecendo que seu sofrimento não é
consequência de más escolhas ou atos pecaminosos. Ou seja, a avalanche sobre Jó
ambienta as seguintes questões do livro:
Fundamentos
Bíblicos e Teológicos
1. A
Soberania de Deus: A rapidez
e a intensidade das tragédias reforçam a soberania absoluta de Deus. Jó reconhece
que tudo vem de Deus, e essa percepção é fundamental para a teologia do livro.
A reação de Jó Nu saí do ventre de minha
mãe e nu voltarei; o Senhor o deu e o Senhor o tomou; bendito seja o nome do
Senhor! - Jó 1:21, demonstra uma aceitação total da vontade divina, sem
tempo para uma reação racionalizada. Isso é consistente com outras partes da
Bíblia que enfatizam a soberania de Deus, como em Isaías 45:7, onde Deus diz Eu formo a luz e crio as trevas; faço a paz
e crio o mal; eu, o Senhor, faço todas essas coisas[1].
2. A
Natureza do Sofrimento: O
modelo da narrativa serve ainda para mostrar a natureza abrupta e inexplicável
do sofrimento. Em Eclesiastes 9:12, lemos Pois
o homem não conhece a sua hora; como peixes que se apanham com a rede
traiçoeira, e como passarinhos que se prendem com laço, assim se enlaçam os
filhos dos homens no mau tempo, quando este cai de repente sobre eles. Essa
passagem sugere que o sofrimento pode ocorrer de maneira repentina e
avassaladora, sem dar tempo para uma análise racional detalhada.
3. Fé
Intuitiva versus Racionalidade: A construção narrativa das calamidades de Jó destaca uma fé que é
intuitiva e baseada na confiança na soberania de Deus, em vez de uma resposta
calculada. Jesus também ressalta a importância de uma fé pura e intuitiva em
Marcos 10:15. Em verdade vos digo que
qualquer que não receber o reino de Deus como uma criança, de maneira nenhuma
entrará nele. A fé de uma criança é instintiva e total, semelhante à reação
de Jó[2].
4. Sofrimento
Não Retributivo: A sequência
das calamidades que ocorrem sobre Jó também serve para deixar claro que seu
sofrimento não é retributivo. Jó é descrito como homem íntegro e reto, temente a Deus e que se desvia do mal (Jó
1:1). A ausência de qualquer menção de pecado ou falha de Jó no contexto das
calamidades destaca sua inocência. Este ponto é crucial para a discussão
teológica subsequente entre Jó e seus amigos, que erroneamente associam seu
sofrimento a algum pecado oculto. A Bíblia reitera essa visão em João 9:1-3,
onde Jesus cura um cego de nascença e explica que a cegueira do homem não era
resultado de pecado, mas para que as
obras de Deus se manifestem nele[3].
A Resposta de Jó: Fé e Adoração
Agora
olhando para a reação de Jó propriamente dita, após a notícia da morte de seus
filhos, ele rasga suas vestes, rapa a cabeça e se prostra em terra[4].
Esses gestos são expressões tradicionais de luto e dor na cultura antiga,
simbolizando uma profunda aflição. No entanto, a reação verbal de Jó transcende
a mera expressão de sofrimento:
"Nu
saí do ventre de minha mãe e nu voltarei; o Senhor o deu e o Senhor o tomou;
bendito seja o nome do Senhor!" (Jó 1:21)[5]
Aqui,
Jó reconhece a soberania de Deus sobre todas as coisas. Sua declaração mostra
uma compreensão teológica profunda de que tudo o que possui, incluindo sua
própria vida, é um dom de Deus. A aceitação de Jó da vontade divina, sem
atribuir a Deus culpa ou injustiça, reflete uma fé inabalável.
Teólogos
como Agostinho e Tomás de Aquino comentaram sobre a figura de Jó como exemplo
de paciência e submissão à vontade divina. Agostinho, em suas obras, vê em Jó
um símbolo da fortaleza espiritual, alguém que, apesar das tribulações, não
perdeu sua integridade nem blasfemou contra Deus. Já Tomás de Aquino, na
"Suma Teológica", destaca que Jó é um exemplo de virtude porque
mantém sua fé e retidão moral apesar do sofrimento. Ele argumenta que Jó
compreende a natureza transitória dos bens materiais e a suprema autoridade de
Deus sobre todas as coisas.
O
livro de Jó lida com a questão do sofrimento do justo e a justiça de Deus. A
reação de Jó aos seus infortúnios está diretamente ligada ao tema central: a
busca por compreensão do propósito do sofrimento humano sob a ótica da justiça
divina. Jó não conhece a razão de seu sofrimento, mas escolhe confiar em Deus.
A
história de Jó nos ensina que a fé verdadeira envolve aceitar tanto os dons
quanto as provações de Deus com um coração submisso e adorador. Jó não apenas
sobrevive ao sofrimento, mas o transforma em uma oportunidade para reafirmar
sua confiança em Deus. Sua resposta diante das calamidades é um testemunho
poderoso de resistência espiritual e entrega incondicional à vontade divina.
O
trecho final do capítulo um, portanto, nos desafia a refletir sobre nossa
própria fé. Estamos prontos a bendizer o nome do Senhor em meio às tempestades
da vida? Jó nos mostra que é possível adorar a Deus não apesar do sofrimento,
mas através dele, reconhecendo sempre a Sua soberania e bondade, mesmo quando
não compreendemos os Seus caminhos.
[1]
Karl Barth: Barth, em sua teologia dialética, enfatiza a transcendência
e a soberania de Deus. Ele argumenta que a revelação de Deus em Jesus Cristo é
paradoxal e surpreendente, desafiando a racionalidade humana. Esse conceito
pode ser aplicado à narrativa de Jó, onde a soberania de Deus se manifesta de
forma inesperada e devastadora, exigindo uma resposta de fé imediata e
intuitiva.
[2]
Dietrich Bonhoeffer: Bonhoeffer fala da “fé simples” que se apega a Deus
em meio às complexidades e sofrimentos da vida. Ele sugere que a verdadeira fé
não é construída através de um processo racional, mas através de uma confiança
inabalável em Deus, especialmente em tempos de crise.
[3]
Gustavo Gutiérrez: Em "On Job: God-Talk and the Suffering of the
Innocent," Gutiérrez argumenta que o sofrimento de Jó é uma reflexão sobre
a injustiça e a ausência de retribuição automática, desafiando a teologia da
retribuição simples. Ele sugere que o sofrimento de Jó é uma plataforma para
discutir a fidelidade e a justiça de Deus em um contexto onde o sofrimento não
é merecido.
[4]
As ações de Jó ao rasgar suas vestes, rapar a cabeça e se prostrar em terra são
gestos de luto e dor profundamente enraizados nas culturas do antigo Oriente
Médio, incluindo as civilizações hebraica, cananeia, egípcia, assíria e
babilônica. Esses atos eram manifestações externas de sofrimento e respeito
pelas tragédias e perdas pessoais.
Na cultura hebraica, as
atitudes de Jó tinham os seguintes significados:
Rasgar as Vestes
·
Significado: Rasgar as vestes era um
símbolo de profunda tristeza e luto. Era um gesto de desespero e angústia,
representando a ruptura do estado emocional do indivíduo.
·
Fundamento Bíblico: Este ato é
frequentemente mencionado na Bíblia. Em Gênesis 37:34, Jacó rasga suas vestes
ao ouvir sobre a suposta morte de seu filho José. Em 2 Samuel 1:11, Davi rasga
suas vestes ao saber da morte de Saul e Jônatas.
Rapar a Cabeça
·
Significado: Rapar a cabeça simbolizava
humilhação e lamentação. Era um sinal de submissão diante de uma calamidade e
uma expressão de luto.
·
Fundamento Bíblico: Em Isaías 22:12, Deus
chama o povo ao luto, incluindo rapar a cabeça e vestir-se de pano de saco.
Jeremias 7:29 também menciona este ato como um símbolo de lamentação.
Prostrar-se em Terra
·
Significado: Prostrar-se em terra era uma
expressão de humildade e submissão completa a Deus. Era um ato de adoração e
rendição à vontade divina.
·
Fundamento Bíblico: Jó se prostra em
terra para adorar (Jó 1:20), mesmo em meio ao sofrimento. Esse ato é também
visto em Gênesis 17:3, onde Abraão se prostra diante de Deus.
[5]
Jó 1:21, é um dos mais citados e comentados nas escrituras, com profundos
significados teológicos. A seguir, apresento alguns dos principais comentários
teológicos sobre este trecho e o que disseram teólogos renomados:
1. John Calvin (João
Calvino)
·
Comentário: Calvino destaca a aceitação
da soberania de Deus e a submissão total de Jó à vontade divina. Para ele, este
versículo exemplifica a verdadeira piedade e a confiança em Deus, mesmo em meio
à adversidade.
·
Citação: “Jó reconhece a mão de Deus em
tudo o que lhe aconteceu, e ao invés de reclamar, ele bendiz a Deus, mostrando
uma fé que não depende das circunstâncias.”
2. Matthew Henry
·
Comentário: Henry vê este versículo como
um exemplo de resignação cristã e humildade. Ele ressalta que Jó não apenas
reconhece a soberania de Deus, mas também encontra motivo para louvar a Deus em
meio ao sofrimento.
·
Citação: “Jó nos ensina a bendizer a Deus
não apenas quando Ele dá, mas também quando Ele tira. Ele nos mostra que tudo o
que temos é um dom de Deus, e portanto, devemos estar prontos para dar glória a
Deus em todas as situações.”
3. Thomas Aquinas (Tomás
de Aquino)
·
Comentário: Aquino interpreta este versículo
dentro do contexto da teodiceia, explorando a questão do sofrimento e da
justiça divina. Ele argumenta que Jó reconhece a justiça e a bondade de Deus,
independentemente das circunstâncias.
·
Citação: “Jó reconhece que o ser humano
vem ao mundo sem nada e nada leva quando parte. Esta visão sublinha a
dependência total do homem em relação a Deus e a justiça divina em todas as
ações.”
4. Gustavo Gutiérrez
·
Comentário: Em sua obra “On Job: God-Talk
and the Suffering of the Innocent,” Gutiérrez vê a declaração de Jó como um
reconhecimento de que a justiça de Deus transcende a compreensão humana e que a
fé verdadeira envolve confiar em Deus mesmo na ausência de explicações
racionais para o sofrimento.
·
Citação: “Jó nos ensina que a fé
verdadeira não é uma barganha com Deus, mas uma confiança incondicional.
Através de sua aceitação do sofrimento, Jó nos mostra que a justiça e a bondade
de Deus estão além da nossa compreensão.”
5. Karl Barth
·
Comentário: Barth vê a declaração de Jó
como um exemplo de fé dialética, onde a relação do homem com Deus é marcada por
uma tensão entre desespero e esperança. Ele argumenta que a reação de Jó
representa um reconhecimento da soberania absoluta de Deus.
·
Citação: “A fé de Jó é paradoxal, pois ao
mesmo tempo em que ele sofre profundamente, ele também louva a Deus. Esta é a
essência da verdadeira fé, uma aceitação radical da soberania de Deus sobre
todas as coisas.”
6. Dietrich Bonhoeffer
·
Comentário: Bonhoeffer interpreta a
reação de Jó como uma expressão de fé inabalável e uma demonstração de que a
verdadeira adoração a Deus não depende das circunstâncias. Ele vê em Jó um
exemplo de como a fé pode resistir ao teste do sofrimento.
·
Citação: “Jó mostra que a verdadeira fé
não é um contrato com Deus, mas uma rendição completa à Sua vontade. Ao dizer
'bendito seja o nome do Senhor', Jó afirma que Deus é digno de louvor
independentemente de nossas circunstâncias.”