Por
Jânsen
Leiros Jr.
“... sofrimento é um estado de aflição severa, associado a
acontecimentos que ameaçam a integridade (manter-se intacto) de uma pessoa.
Sofrimento exige consciência de si, envolve as emoções, tem efeitos nas
relações pessoais da pessoa, e tem um impacto no corpo.16”
The nature of suffering and the goals of medicine; Oxford
University Press; 2004
https://www.scielo.br/j/bioet/a/mhFhLXsrNGTgMKKyCLfGjsM/
Cassell EJ
Iniciando nosso mergulho pelas diversas compreensões sobre quais temas versa efetivamente o Livro de Jó, começaremos pelo que é mais comumente admitido; o sofrimento humano. E claro, não seria prudente realizar qualquer tarefa nesse sentido, sem antes definirmos mais adequadamente o que convencionaremos chamar de sofrimento. Isso nos ajudará em não perder tempo com aquilo que não é sofrimento, confusão muito comum, principalmente em nossos dias, quando melindres exacerbados ou relevâncias impertinentes, dominam as pautas de discussões acadêmicas e populares diariamente.
Compreensões filosóficas do sofrimento
Segundo a Filosofia, o sofrimento humano é um tema bastante complexo, analisado e abordado por diferentes correntes de pensamento ao longo da história. Existem, tanto na literatura filosófica, quanto em sua tradicional forma de problematizar uma questão, diversas interpretações sobre o que constitui o sofrimento, assim como aquilo que não é considerado como tal. Os mais comuns, são:
Perspectiva Existencialista
De acordo com os filósofos como Jean-Paul Sartre[1] e Søren Kierkegaard[2], o sofrimento humano surge da angústia existencial causada pela consciência da própria finitude, liberdade e responsabilidade, questões que lançam o ser humano em um debate interno interminável e questionador sobre si mesmo, suas possibilidades, feitos e continuidade. Para ambos, o sofrimento está enraizado na condição fundamental da existência humana, que busca por sentido em um universo aparentemente sem significado intrínseco; as clássicas perguntas: Por quê existimos? De onde viemos? Para onde vamos?
Visão Budista
Já na filosofia budista[3],
o sofrimento é condição central para a compreensão da existência humana. O
conceito de "dukkha" refere-se ao sofrimento causado pela insatisfação, pelo apego e pela impermanência das coisas. Para os
budistas, a superação do sofrimento envolve a compreensão da natureza
transitória e ilusória da realidade e a prática do desapego e da compaixão. Ou
seja, à medida que nos aliviamos do peso da importância que damos a coisas e
condições totalmente temporais, e portanto efêmeras, o sofrimento reduz. É o
estado permanente de resignação e desprendimento a tudo que nos cerca, que pode
diminuir o sofrimento, pois que, anulado pela compreensão, o poder de afetação
que pessoas, coisas e fatos têm sobre nossas vidas, se anula por completo.
Perspectiva Ética
Alguns filósofos abordam o sofrimento
humano do ponto de vista ético, considerando-o como resultado de injustiças,
desigualdades e violações dos direitos humanos[4].
Nessa visão, o sofrimento é frequentemente visto como algo a ser combatido e
mitigado por meio da justiça social, da solidariedade e da ação política. De
certa forma, tal abordagem entende a ética aplicada como uma espécie de tábua
de salvação, para a redução do sofrimento em nossa sociedade. Uma vez éticos em
todas as interações da vida, a falta de conflitos pela manutenção dos direitos,
regras e deveres, aliviariam a humanidade do sofrimento que lhe aflige.
Filosofia da Dor
Já quanto ao que não se deve considerar
efetivo sofrimento, mas cujas fronteiras são sutis e sensíveis a variações
intrínsecas, há relevantes pensamentos que dependem exclusivamente da
perspectiva filosófica adotada, diante das circunstâncias. Alguns exemplos:
Desafios e Adversidades
Algumas visões filosóficas consideram
que enfrentar desafios e adversidades pode ser uma oportunidade de crescimento e
autotransformação, em vez de apenas causar algum sofrimento, ou mesmo
significar sofrimento em si mesmos. Nesse sentido, o sofrimento pode ser
percebido como parcela inevitável, mas não necessariamente negativa, da
condição humana, tornando-se nada mais que um catalisador que impulsiona o
desenvolvimento pessoal. Seria uma espécie de sofrimento instrumental, em que
sua existência realiza de forma intrinsecamente planejada, na busca da melhoria
da pessoa afligida. O que, em certa medida, em nada reduz a legitimidade do
sofrimento e seu aspecto de aflição severa, se assim se constituir, no caso.
Experiências Próprias da Vida
Algumas formas de experiência, como
alegria, prazer e contentamento, são vistas por muitos como opostas ao
sofrimento. Há filósofos, no entanto, que argumentam que até mesmo essas
experiências, aparentemente positivas, podem conter elementos de sofrimento, quer
seja pela sua transitoriedade, quer seja por sua natureza efêmera, porque
causariam aflição pela impossibilidade da continuidade do estágio de alegria.
Uma espécie de sofrimento causado por um fim
de festa ou pelo sorvete que cai.
Isso é um pensamento contido no mito da Ferida de Fisher King[6],
por exemplo, e que reforça o conceito de Spinoza[7],
que entendia a alegria como verdadeira mola propulsora para o potente estado de
realização humana. A perda do estado permanente de contentamento, no entanto, não
deve mesmo ser considerado necessariamente como um sofrimento ou aflição
severa.
Indiferença ou Apatia
Em certos contextos filosóficos, a falta de sensibilidade ou preocupação com a própria condição desfavorável, ou mesmo pelo sofrimento alheio, pode ser vista como ausência de empatia e compaixão, que podem provocar, em estágios prolongados, sofrimento em si. Ainda que não se traduzam como aflição severa em um primeiro momento, a ausência de indignação, reação ou vontade de transformação de um determinado e incômodo status quo, pode gerar nostalgia, melancolia, e ainda desesperança, gerando sim, no tempo, permanente aflição.
Baseado no que vimos até agora, fica claro que os diferentes pontos de vista sobre o que é sofrimento ou não, são incapazes de qualificar ou desqualificar, de forma categórica, o que é ou não um estado de aflição severa, ou sofrimento. Assim, em vez de buscarmos entender de qual sofrimento trata o argumento teológico que entende o Livro de Jó como um tratado sobre o sofrimento humano, talvez seja muito mais interessante avaliarmos se, independente do grau ou natureza da aflição severa apresentada na narrativa, o sofrimento é mesmo o mote e tema central do autor do livro. Isso implicará em uma abordagem mais holística e contextualizada da obra, em que juntos buscaremos compreender os temas e mensagens que o autor pretendeu transmitir, em vez de nos concentrar exclusivamente nos aspectos intrínsecos ao sofrimento.
O próximo capítulo, portanto, provocará uma infinidade de confrontações com paradigmas e ideias pré-concebidas, sedimentadas em nós por análises diversas realizadas sobre o Livro de Jó ao longo de nossas vidas. E como eu sei? Porque passei pelas mesmas angustias construindo o conteúdo que você acessará agora. Mas não se preocupe. A qualquer momento você poderá apertar o botão e chamar a tripulação[8]. Iremos socorrer você.
[1] Jean-Paul
Sartre foi um filósofo, escritor, dramaturgo e crítico francês, nascido em 21
de junho de 1905 e falecido em 15 de abril de 1980. Ele é uma figura
proeminente na história do existencialismo e uma das figuras mais influentes da
filosofia do século XX. Sartre é conhecido por sua obra filosófica, literária e
política, incluindo textos como "O Ser e o Nada", onde desenvolve sua
filosofia existencialista, e sua peça teatral "Entre Quatro Paredes".
Sartre também foi um ativista político engajado, especialmente ligado ao
marxismo e ao socialismo, e teve uma influência significativa na cultura
francesa e global.
[2] Søren
Kierkegaard foi um filósofo, teólogo e escritor dinamarquês do século XIX,
nascido em 5 de maio de 1813 e falecido em 11 de novembro de 1855. Ele é
amplamente considerado o pai do existencialismo, uma corrente filosófica que
enfatiza a existência individual, a liberdade e a responsabilidade pessoal.
Kierkegaard produziu uma obra vasta e influente,
explorando temas como a angústia, a fé, a liberdade, o desespero e a
responsabilidade ética. Entre suas obras mais importantes estão "O
Conceito de Angústia", "Ou-Ou: Um Fragmento de Vida",
"Temor e Tremor", "O Desespero Humano" e "A Doença
Mortal".
[3] A filosofia
budista é uma tradição de pensamento que se originou a partir dos ensinamentos
de Siddhartha Gautama, conhecido como Buda, na Índia, por volta do século VI
a.C. Ela busca compreender a natureza da existência humana, o sofrimento e o
caminho para a libertação do sofrimento.
Uma de suas principais bases filosóficas é o conceito
de Quatro Nobres Verdades, que formam o cerne dos ensinamentos de Buda. Essas
verdades afirmam que a vida é permeada pelo sofrimento (dukkha), que o
sofrimento tem uma causa (tanha, ou desejo), que existe um fim para o
sofrimento (nirvana) e que há um caminho para alcançar o fim do sofrimento,
conhecido como o Nobre Caminho Óctuplo.
Além disso, a filosofia budista enfatiza a
impermanência (anicca) de todas as coisas, a ausência de um eu permanente ou
alma (anatta), e a interdependência de todos os fenômenos (pratitya-samutpada).
Esses conceitos são fundamentais para a compreensão da existência humana e são
explorados em profundidade nas várias escolas e tradições do budismo.
[4]
Alguns filósofos que contribuíram significativamente para a
compreensão do sofrimento humano no contexto das injustiças sociais,
desigualdades e violações dos direitos humanos, oferecendo insights éticos e
políticos sobre como lidar com essas questões.
1.
Karl Marx: Ele discutiu o sofrimento humano em
termos de desigualdades econômicas e sociais, argumentando que o sistema
capitalista cria injustiças que causam sofrimento aos trabalhadores.
2.
Friedrich Engels: Junto com Marx, Engels também
analisou o sofrimento humano dentro do contexto das desigualdades sociais e
econômicas, especialmente no que diz respeito à exploração da classe
trabalhadora.
3.
John Stuart Mill: Mill abordou o sofrimento
humano em seu utilitarismo, argumentando que a busca pelo maior bem-estar para
o maior número de pessoas é fundamental para reduzir o sofrimento causado por
injustiças sociais e políticas.
4.
John Rawls: Rawls discutiu o sofrimento humano
em termos de justiça distributiva, defendendo princípios que buscam reduzir as
desigualdades e promover o bem-estar de todos os membros da sociedade.
5.
Amartya Sen: Sen explorou o sofrimento humano em
relação à privação de liberdades básicas e oportunidades, destacando a
importância de abordar as causas estruturais das desigualdades para reduzir o
sofrimento humano.
[5] Elaine
Scarry é uma renomada filósofa, escritora e professora universitária
norte-americana, nascida em 30 de junho de 1946. Ela é conhecida por seu trabalho
interdisciplinar que abrange campos como filosofia política, teoria literária,
estudos de gênero e direitos humanos.
Scarry é professora de Estudos e de Literatura Inglesa
na Universidade de Harvard, onde leciona desde 1999. Antes disso, lecionou na Universidade
de Chicago e na Universidade da Pensilvânia. Seus interesses de pesquisa
incluem questões de dor, violência, beleza, linguagem e justiça.
Entre suas obras mais conhecidas está "The Body
in Pain: The Making and Unmaking of the World" (1985), onde ela examina o
conceito de dor física e suas implicações sociais, políticas e éticas. Scarry
também escreveu sobre outros temas, como direitos humanos, guerra, tortura e
literatura. Sua abordagem analítica e sua capacidade de conectar ideias
filosóficas complexas com questões práticas da vida cotidiana lhe renderam
reconhecimento internacional.
[6] A
Ferida de Fisher King é um conceito que tem suas raízes na mitologia celta e
foi popularizado na obra "O Herói de Mil Faces", de Joseph Campbell,
e também na análise de mitos realizada por Carl Jung. O termo "Fisher
King" vem da lenda do Rei Pescador, que é associada ao ciclo arturiano e
ao Santo Graal.
Segundo a lenda, o Rei Pescador, que também é
conhecido como Rei Ferido ou Rei Aleijado, é o guardião do Santo Graal, o
cálice sagrado. Ele está ferido ou doente de alguma forma, e essa ferida está
relacionada à terra, à fertilidade e ao bem-estar de seu reino. A incapacidade
do Rei Pescador de curar sua própria ferida reflete-se na terra ao seu redor,
que se torna árida e estéril.
A busca pelo Santo Graal muitas vezes envolve a busca
por uma cura para a ferida do Rei Pescador. O herói que consegue encontrar e
devolver o Graal ao Rei Pescador é capaz de curar sua ferida e restaurar a
fertilidade e a prosperidade ao reino.
A Ferida de Fisher King é um símbolo poderoso que
representa a conexão entre o bem-estar individual e o bem-estar do mundo ao
nosso redor. Ela também é vista como uma metáfora para a jornada espiritual do
herói em busca de cura, redenção e renovação.
[7] Baruch
Spinoza, de ascendência judaica, foi um filósofo holandês, do século XVII,
considerado um dos grandes racionalistas da filosofia ocidental. Ele é
conhecido principalmente por sua obra "Ética", na qual desenvolve uma
filosofia que combina elementos de panteísmo, determinismo e racionalismo.
Spinoza argumentava que Deus e a natureza são uma mesma realidade substancial e
que tudo o que acontece no universo é determinado por leis naturais. Ele
defendia uma ética baseada na razão, no autoconhecimento e na liberdade
interior, buscando a felicidade através do conhecimento e da compreensão da ordem
natural das coisas. Suas ideias influenciaram significativamente o pensamento
moderno nas áreas da filosofia, teologia, política e ética.
[8] Como os
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