segunda-feira, 11 de março de 2024

O Problema do Sofrimento - Parte 1

 

Por Jânsen Leiros Jr.


 

 

“... sofrimento é um estado de aflição severa, associado a acontecimentos que ameaçam a integridade (manter-se intacto) de uma pessoa. Sofrimento exige consciência de si, envolve as emoções, tem efeitos nas relações pessoais da pessoa, e tem um impacto no corpo.16

 

The nature of suffering and the goals of medicine; Oxford University Press; 2004

https://www.scielo.br/j/bioet/a/mhFhLXsrNGTgMKKyCLfGjsM/

Cassell EJ

Iniciando nosso mergulho pelas diversas compreensões sobre quais temas versa efetivamente o Livro de Jó, começaremos pelo que é mais comumente admitido; o sofrimento humano. E claro, não seria prudente realizar qualquer tarefa nesse sentido, sem antes definirmos mais adequadamente o que convencionaremos chamar de sofrimento. Isso nos ajudará em não perder tempo com aquilo que não é sofrimento, confusão muito comum, principalmente em nossos dias, quando melindres exacerbados ou relevâncias impertinentes, dominam as pautas de discussões acadêmicas e populares diariamente.

 Sofrimento – o que, o que não é, e o que pode acabar sendo

 Na definição do médico e biocientista dr. Eric J. Cassel, cujo resumo acima tomamos emprestado, sofrimento é um estado de aflição severa. Vamos guardar esse trecho como um extrato concentrado, que de certa forma encerra em si, a explicação do que define bem especificamente o sofrimento; uma aflição severa.

 Esta definição preliminar é necessária, repito, para que não confundamos pequenos infortúnios ou condições existenciais desfavoráveis, com aquilo que é efetivamente um sofrimento. Não são poucas as vezes que escutamos pessoas dizerem estou sofrendo muito, fazendo menção a reveses comuns à vida humana. Desemprego, endividamento, fim de um relacionamento ou traições, são exemplos de reveses da vida, que nos causam sim, tristeza, melancolia, angústia ou indignação, reações pra lá de legítimas diante de tais realidades. Ainda assim, porém, não são um estado de aflição severa, e assim definidos como sofrimento propriamente dito. O estágio de transitoriedade razoavelmente curto de tais circunstâncias, somado à possibilidade latente de reversão da condição experimentada, reduzem a severidade da aflição, assim desqualificando-as como sofrimento.

 De qualquer forma, e para que nossos argumentos mais adiante não se tornem pobres e tendenciosos, e carentes de sustentação, vejamos resumidamente o que outras correntes, além da biociência, costumam definir como sofrimento, admitindo-se, inclusive, que mesmo aquilo que em princípio não pode ser aferido como sofrimento no rigor da análise, não está livre de tornar-se sofrimento, dependendo de contextos, variações circunstanciais ou prolongado estágio de permanência.

Compreensões filosóficas do sofrimento

Segundo a Filosofia, o sofrimento humano é um tema bastante complexo, analisado e abordado por diferentes correntes de pensamento ao longo da história. Existem, tanto na literatura filosófica, quanto em sua tradicional forma de problematizar uma questão, diversas interpretações sobre o que constitui o sofrimento, assim como aquilo que não é considerado como tal. Os mais comuns, são:

Perspectiva Existencialista

De acordo com os filósofos como Jean-Paul Sartre[1] e Søren Kierkegaard[2], o sofrimento humano surge da angústia existencial causada pela consciência da própria finitude, liberdade e responsabilidade, questões que lançam o ser humano em um debate interno interminável e questionador sobre si mesmo, suas possibilidades, feitos e continuidade. Para ambos, o sofrimento está enraizado na condição fundamental da existência humana, que busca por sentido em um universo aparentemente sem significado intrínseco; as clássicas perguntas: Por quê existimos? De onde viemos? Para onde vamos?

Visão Budista

Já na filosofia budista[3], o sofrimento é condição central para a compreensão da existência humana. O conceito de "dukkha" refere-se ao sofrimento causado pela insatisfação, pelo apego e pela impermanência das coisas. Para os budistas, a superação do sofrimento envolve a compreensão da natureza transitória e ilusória da realidade e a prática do desapego e da compaixão. Ou seja, à medida que nos aliviamos do peso da importância que damos a coisas e condições totalmente temporais, e portanto efêmeras, o sofrimento reduz. É o estado permanente de resignação e desprendimento a tudo que nos cerca, que pode diminuir o sofrimento, pois que, anulado pela compreensão, o poder de afetação que pessoas, coisas e fatos têm sobre nossas vidas, se anula por completo.

Perspectiva Ética

Alguns filósofos abordam o sofrimento humano do ponto de vista ético, considerando-o como resultado de injustiças, desigualdades e violações dos direitos humanos[4]. Nessa visão, o sofrimento é frequentemente visto como algo a ser combatido e mitigado por meio da justiça social, da solidariedade e da ação política. De certa forma, tal abordagem entende a ética aplicada como uma espécie de tábua de salvação, para a redução do sofrimento em nossa sociedade. Uma vez éticos em todas as interações da vida, a falta de conflitos pela manutenção dos direitos, regras e deveres, aliviariam a humanidade do sofrimento que lhe aflige.

Filosofia da Dor

                  Há também correntes de pensamento que se dedicam especificamente ao estudo da dor física e emocional, entendendo que uma pode naturalmente implicar na outra, sendo ao mesmo tempo, causa e efeito entre si. Filósofos como Elaine Scarry[5] exploram a natureza da dor e sua relação com a linguagem, o corpo e a experiência subjetiva. Esse conceito tem relação com a questão do luto e suas consequências perceptíveis na vida do enlutado. A dor da perda, incompreendida ou inaceitável, provoca sofrimento permanente, capaz de alterar o estado de existência e até mesmo a vontade de seguir vivendo. Nesta abordagem, inclusive, podemos incluir ainda a questão das falas agressivas, cujo conteúdo hostil e contundente podem trazer marcas e traumas, muitas vezes difíceis de serem superados.


Já quanto ao que não se deve considerar efetivo sofrimento, mas cujas fronteiras são sutis e sensíveis a variações intrínsecas, há relevantes pensamentos que dependem exclusivamente da perspectiva filosófica adotada, diante das circunstâncias. Alguns exemplos:

Desafios e Adversidades

Algumas visões filosóficas consideram que enfrentar desafios e adversidades pode ser uma oportunidade de crescimento e autotransformação, em vez de apenas causar algum sofrimento, ou mesmo significar sofrimento em si mesmos. Nesse sentido, o sofrimento pode ser percebido como parcela inevitável, mas não necessariamente negativa, da condição humana, tornando-se nada mais que um catalisador que impulsiona o desenvolvimento pessoal. Seria uma espécie de sofrimento instrumental, em que sua existência realiza de forma intrinsecamente planejada, na busca da melhoria da pessoa afligida. O que, em certa medida, em nada reduz a legitimidade do sofrimento e seu aspecto de aflição severa, se assim se constituir, no caso.

Experiências Próprias da Vida

Algumas formas de experiência, como alegria, prazer e contentamento, são vistas por muitos como opostas ao sofrimento. Há filósofos, no entanto, que argumentam que até mesmo essas experiências, aparentemente positivas, podem conter elementos de sofrimento, quer seja pela sua transitoriedade, quer seja por sua natureza efêmera, porque causariam aflição pela impossibilidade da continuidade do estágio de alegria. Uma espécie de sofrimento causado por um fim de festa ou pelo sorvete que cai. Isso é um pensamento contido no mito da Ferida de Fisher King[6], por exemplo, e que reforça o conceito de Spinoza[7], que entendia a alegria como verdadeira mola propulsora para o potente estado de realização humana. A perda do estado permanente de contentamento, no entanto, não deve mesmo ser considerado necessariamente como um sofrimento ou aflição severa.

Indiferença ou Apatia

Em certos contextos filosóficos, a falta de sensibilidade ou preocupação com a própria condição desfavorável, ou mesmo pelo sofrimento alheio, pode ser vista como ausência de empatia e compaixão, que podem provocar, em estágios prolongados, sofrimento em si. Ainda que não se traduzam como aflição severa em um primeiro momento, a ausência de indignação, reação ou vontade de transformação de um determinado e incômodo status quo, pode gerar nostalgia, melancolia, e ainda desesperança, gerando sim, no tempo, permanente aflição.

Baseado no que vimos até agora, fica claro que os diferentes pontos de vista sobre o que é sofrimento ou não, são incapazes de qualificar ou desqualificar, de forma categórica, o que é ou não um estado de aflição severa, ou sofrimento. Assim, em vez de buscarmos entender de qual sofrimento trata o argumento teológico que entende o Livro de Jó como um tratado sobre o sofrimento humano, talvez seja muito mais interessante avaliarmos se, independente do grau ou natureza da aflição severa apresentada na narrativa, o sofrimento é mesmo o mote e tema central do autor do livro. Isso implicará em uma abordagem mais holística e contextualizada da obra, em que juntos buscaremos compreender os temas e mensagens que o autor pretendeu transmitir, em vez de nos concentrar exclusivamente nos aspectos intrínsecos ao sofrimento.

O próximo capítulo, portanto, provocará uma infinidade de confrontações com paradigmas e ideias pré-concebidas, sedimentadas em nós por análises diversas realizadas sobre o Livro de Jó ao longo de nossas vidas. E como eu sei? Porque passei pelas mesmas angustias construindo o conteúdo que você acessará agora. Mas não se preocupe. A qualquer momento você poderá apertar o botão e chamar a tripulação[8]. Iremos socorrer você.



[1] Jean-Paul Sartre foi um filósofo, escritor, dramaturgo e crítico francês, nascido em 21 de junho de 1905 e falecido em 15 de abril de 1980. Ele é uma figura proeminente na história do existencialismo e uma das figuras mais influentes da filosofia do século XX. Sartre é conhecido por sua obra filosófica, literária e política, incluindo textos como "O Ser e o Nada", onde desenvolve sua filosofia existencialista, e sua peça teatral "Entre Quatro Paredes". Sartre também foi um ativista político engajado, especialmente ligado ao marxismo e ao socialismo, e teve uma influência significativa na cultura francesa e global.

[2] Søren Kierkegaard foi um filósofo, teólogo e escritor dinamarquês do século XIX, nascido em 5 de maio de 1813 e falecido em 11 de novembro de 1855. Ele é amplamente considerado o pai do existencialismo, uma corrente filosófica que enfatiza a existência individual, a liberdade e a responsabilidade pessoal.

Kierkegaard produziu uma obra vasta e influente, explorando temas como a angústia, a fé, a liberdade, o desespero e a responsabilidade ética. Entre suas obras mais importantes estão "O Conceito de Angústia", "Ou-Ou: Um Fragmento de Vida", "Temor e Tremor", "O Desespero Humano" e "A Doença Mortal".

[3] A filosofia budista é uma tradição de pensamento que se originou a partir dos ensinamentos de Siddhartha Gautama, conhecido como Buda, na Índia, por volta do século VI a.C. Ela busca compreender a natureza da existência humana, o sofrimento e o caminho para a libertação do sofrimento.

Uma de suas principais bases filosóficas é o conceito de Quatro Nobres Verdades, que formam o cerne dos ensinamentos de Buda. Essas verdades afirmam que a vida é permeada pelo sofrimento (dukkha), que o sofrimento tem uma causa (tanha, ou desejo), que existe um fim para o sofrimento (nirvana) e que há um caminho para alcançar o fim do sofrimento, conhecido como o Nobre Caminho Óctuplo.

Além disso, a filosofia budista enfatiza a impermanência (anicca) de todas as coisas, a ausência de um eu permanente ou alma (anatta), e a interdependência de todos os fenômenos (pratitya-samutpada). Esses conceitos são fundamentais para a compreensão da existência humana e são explorados em profundidade nas várias escolas e tradições do budismo.

[4] Alguns filósofos que contribuíram significativamente para a compreensão do sofrimento humano no contexto das injustiças sociais, desigualdades e violações dos direitos humanos, oferecendo insights éticos e políticos sobre como lidar com essas questões.

1.       Karl Marx: Ele discutiu o sofrimento humano em termos de desigualdades econômicas e sociais, argumentando que o sistema capitalista cria injustiças que causam sofrimento aos trabalhadores.

2.       Friedrich Engels: Junto com Marx, Engels também analisou o sofrimento humano dentro do contexto das desigualdades sociais e econômicas, especialmente no que diz respeito à exploração da classe trabalhadora.

3.       John Stuart Mill: Mill abordou o sofrimento humano em seu utilitarismo, argumentando que a busca pelo maior bem-estar para o maior número de pessoas é fundamental para reduzir o sofrimento causado por injustiças sociais e políticas.

4.       John Rawls: Rawls discutiu o sofrimento humano em termos de justiça distributiva, defendendo princípios que buscam reduzir as desigualdades e promover o bem-estar de todos os membros da sociedade.

5.       Amartya Sen: Sen explorou o sofrimento humano em relação à privação de liberdades básicas e oportunidades, destacando a importância de abordar as causas estruturais das desigualdades para reduzir o sofrimento humano.

[5] Elaine Scarry é uma renomada filósofa, escritora e professora universitária norte-americana, nascida em 30 de junho de 1946. Ela é conhecida por seu trabalho interdisciplinar que abrange campos como filosofia política, teoria literária, estudos de gênero e direitos humanos.

Scarry é professora de Estudos e de Literatura Inglesa na Universidade de Harvard, onde leciona desde 1999. Antes disso, lecionou na Universidade de Chicago e na Universidade da Pensilvânia. Seus interesses de pesquisa incluem questões de dor, violência, beleza, linguagem e justiça.

Entre suas obras mais conhecidas está "The Body in Pain: The Making and Unmaking of the World" (1985), onde ela examina o conceito de dor física e suas implicações sociais, políticas e éticas. Scarry também escreveu sobre outros temas, como direitos humanos, guerra, tortura e literatura. Sua abordagem analítica e sua capacidade de conectar ideias filosóficas complexas com questões práticas da vida cotidiana lhe renderam reconhecimento internacional.

[6] A Ferida de Fisher King é um conceito que tem suas raízes na mitologia celta e foi popularizado na obra "O Herói de Mil Faces", de Joseph Campbell, e também na análise de mitos realizada por Carl Jung. O termo "Fisher King" vem da lenda do Rei Pescador, que é associada ao ciclo arturiano e ao Santo Graal.

Segundo a lenda, o Rei Pescador, que também é conhecido como Rei Ferido ou Rei Aleijado, é o guardião do Santo Graal, o cálice sagrado. Ele está ferido ou doente de alguma forma, e essa ferida está relacionada à terra, à fertilidade e ao bem-estar de seu reino. A incapacidade do Rei Pescador de curar sua própria ferida reflete-se na terra ao seu redor, que se torna árida e estéril.

A busca pelo Santo Graal muitas vezes envolve a busca por uma cura para a ferida do Rei Pescador. O herói que consegue encontrar e devolver o Graal ao Rei Pescador é capaz de curar sua ferida e restaurar a fertilidade e a prosperidade ao reino.

A Ferida de Fisher King é um símbolo poderoso que representa a conexão entre o bem-estar individual e o bem-estar do mundo ao nosso redor. Ela também é vista como uma metáfora para a jornada espiritual do herói em busca de cura, redenção e renovação.

[7] Baruch Spinoza, de ascendência judaica, foi um filósofo holandês, do século XVII, considerado um dos grandes racionalistas da filosofia ocidental. Ele é conhecido principalmente por sua obra "Ética", na qual desenvolve uma filosofia que combina elementos de panteísmo, determinismo e racionalismo. Spinoza argumentava que Deus e a natureza são uma mesma realidade substancial e que tudo o que acontece no universo é determinado por leis naturais. Ele defendia uma ética baseada na razão, no autoconhecimento e na liberdade interior, buscando a felicidade através do conhecimento e da compreensão da ordem natural das coisas. Suas ideias influenciaram significativamente o pensamento moderno nas áreas da filosofia, teologia, política e ética.

[8] Como os textos aqui do blog são sequenciados e pertencentes a uma obra aberta, em caso de dúvida e querendo esclarecer qualquer coisa, entre em contato com o os administradores do blog. Basta colocar suas considerações, perguntas ou críticas, nos comentários de cada texto. Teremos enorme prazer em responder a todos.