Por Jânsen Leiros Jr.
"Baseado neste enredo simples, um escritor desconhecido de gênio superlativo erigiu uma obra monumental. As perguntas mais persistentes acerca do relacionamento entre os homens e Deus receberam tratamento teológico poderoso em poesia cuja majestade e emoção não são superadas em qualquer literatura, antiga ou moderna.
JÓ - Introdução e Comentário
De Francis I. Andersen
Pág. 14; Introdução – A história de Jó
Uma das tarefas mais preliminares e ajuizadas a que um estudioso deve se lançar ao empreender um comentário, qualquer que seja o livro que pretende comentar, é identificar e qualificar seu autor, e conhecer quando, como e porque tal livro foi escrito. Só depois, então, de satisfeito com os dados colhidos e organizados sobre estas questões, poderá iniciar, com alguma segurança, um comentário responsável. Ato contínuo, o estudo e a compreensão do texto do livro, será minimamente orientado pelas informações acumulados nesta fase. Assim rezam as boas práticas. O livro de Jó, porém, sofre do que costumo chamar impertinência normativa.
Escrito, por alguém que não se sabe quem, em um lugar que não se sabe onde, e por uma razão que não se sabe ao certo porque, o livro de Jó é um case de insucessos especulativos dos mais diversos e renomados estudiosos bíblicos e teólogos mundo afora, que se lançaram na elucubração metodológica de pontuar assertivamente, cada um dos fatores preliminares de qualquer estudo: quem, quando, onde e por que.
As especulações sobre o livro de Jó se iniciam mesmo antes das pesquisas preliminares, quando o próprio personagem central da história, tem sua existência questionada pelo próprio processo crítico-literário de seu conteúdo. Apresentado como uma dramatização bem organizada e com discursos bem estruturados, coerentes e lógicos, a narrativa apresenta uma complexidade muito bem elaborada, difícil de encontrar paralelismo na realidade cotidiana da vida humana, onde o improviso das falas, argumentos e contra-argumentos, não permitiriam um encadeamento tão perfeito de ideais e conceitos a se defender por seus oradores.
Por estas questões, o estudo do livro de Jó, entendo, começa bem parecido com a história de seu próprio personagem; mesmo buscando fazer o que é certo se vê, por sua nova realidade, mergulhado em incertezas profundas, que o obriga a desconstruir muitas de suas percepções anteriores, para reiniciar um melhor entendimento e conhecimento de Deus; legitimado, transformado e renovado. Nossas convicções, creio, passarão pelo mesmo e estreito caminho.
Assim, para facilitar-nos a compreensão e nos provocarmos às mais corajosas induções e deduções ao longo do estudo, iremos ordenadamente cumprir o passo a passo do manual do bom comentário, indo desde um resumo necessário do conteúdo do livro, até a avaliação da integridade de seu texto, passando pela discussão de sua autoria, onde e quando foi escrito, e por que participa do compêndio bíblico, sendo assim aceito como Palavra de Deus.
I. A história do Livro de Jó
A história de livro de Jó muito provavelmente figura entre as histórias bíblicas mais conhecidas em todo o mundo. Usada até mesmo como ditado popular, a história de Jó não possui questões teológicas intrincadas, conceitos filosóficos complexos, ou mesmo apelos éticos de difícil elaboração. Muito pelo contrário, sua história é simples, sua comunicação direta, e seu recado pra lá de evidente. Por que, então, e apesar de toda a simplicidade, esse livro traz tantas inquietações e provoca tanta curiosidade nos mais diversos grupos religiosos com acesso à sua história?
Uma resposta possível, talvez, sejam os temas que o livro abordará, mesmo sem que possamos ter a certeza de que tal tenha sido a pretensão original de seu autor. Assuntos como o mal, o sofrimento, a justiça e a soberania de Deus, ocuparão páginas e páginas, visitando os discursos feitos por Jó, seus amigos, e por fim pelo próprio Deus, numa sequência de tirar o fôlego, quase não deixando espaço para o leitor descansar.
Começando por uma rápida qualificação do personagem principal, o autor logo corta para uma conversa de bastidor entre Deus e Satanás, que servirá de estopim para todos os infortúnios que advirão sobre Jó e sua família. Numa sequência que lembra o início do filme Desventuras em Série, tudo de ruim acontecerá para Jó, que ao final dos trágicos acontecimentos preliminares, vai dizer: louvado seja Deus.
Não bastasse a tragédia que se abate sobre sua vida, a esposa do nosso personagem, assistindo seu sofrimento e perplexa diante de sua aceitação dos fatos, propõe, com uma das mais controversas falas bíblicas na atualidade: abençoe a Deus e morra. Por que? Ela teria razão no que está dizendo? Estaria consciente do devaneio de sua fala? Jó entende que não. Mas seus amigos entendem que sim. Ou que ao menos toda aquela coleção de infortúnios só pode querer dizer uma coisa: Jó teria aprontado alguma coisa muito feia. Inominável. Um segredo que o consumia, posto que, guardado, lhe vinha provocar desonra pública e muitas chagas. A demonstração inquestionável da reprovação de Deus. Uma punição direta e dolorida. Ele precisaria então confessar seu pecado para que tudo viesse a ser restaurado em sua vida. E enquanto isso, seus amigos estariam ali para lhe consolar e amparar. Seria mesmo só essa a intenção daqueles homens?
Jó resiste bravamente. Incitado continuamente a confessar o que não fizera, seu discurso se volta para aquele que entende estar agindo com injustiça para com ele; Deus. Que diante das argumentações e defesa que Jó faz de si mesmo, não se ocupa em responder tais argumentos. Em vez disso, revela ao próprio Jó a grandeza e magnitude de seus propósitos desde a concepção do universo, até o momento presente daquela conversa, afirmando-se eterno, onisciente e soberano. É verdade, o texto não registra. Mas minha impressão é a de que Jó empalidece, posto que seus argumentos cessam.
Acontece que esta banda é na verdade uma orquestra. Tudo isso que, como melodia fácil de ser lembrada se reconhece de longe quando executada, de perto se revela uma das mais extraordinárias composições do universo, repleta de compassos, fusas e semifusas, fermatas e acordes dissonantes, tocados por diferentes e inesperados instrumentos, que harmoniosamente produzem uma das mais belas obras primas da literatura bíblica, e por que não dizer, universal?