sábado, 7 de setembro de 2024

Os amigos provocadores de Jó

 Por Jânsen Leiros Jr.

“Os três amigos de Jó desempenham um papel crucial na narrativa não apenas como interlocutores, mas como catalisadores para o desenvolvimento espiritual e teológico de Jó. Sua presença e argumentos fornecem a Jó a oportunidade de confrontar e refinar suas próprias crenças sobre Deus e o sofrimento. Através do diálogo com Elifaz, Bildade e Zofar, Jó é levado a uma introspecção mais profunda e a uma compreensão mais amadurecida da justiça divina e da relação entre o sofrimento e a fé. Assim, os amigos de Jó, embora errôneos em suas respostas, são instrumentos necessários para o processo de crescimento e revelação de Jó, que culmina na sua experiência direta com Deus e na restauração da sua compreensão espiritual.”

 Gerhard von Rad, teólogo do Antigo Testamento e especialista em livros sapienciais

 Não seria prudente, na sequência de nossos estudos no Livro de Jó, iniciarmos o estudo dos capítulos, sem antes fazermos algumas ponderações sobre os amigos que dividem as cenas da obra com ele. Os “amigos de Jó”, assim declarados e participantes ativos da narrativa, são fundamentais para a construção do drama teológico e humano que permeia toda a obra. Esses personagens – Elifaz, Bildade, Zofar e, posteriormente, Eliú – representam, em suas diferentes abordagens, uma tentativa de explicar o sofrimento humano à luz da justiça divina. A complexidade dessa interação não se restringe a um simples diálogo de consolo, mas adentra o cerne de questões existenciais e espirituais que desafiam o entendimento tradicional da relação entre Deus e o ser humano.

Os amigos de Jó se inserem na narrativa como representantes de diferentes correntes de pensamento da época sobre a retribuição divina, ou seja, a crença de que a prosperidade é uma recompensa pela justiça e o sofrimento, uma consequência do pecado. Eles trazem uma cosmovisão comum no Antigo Oriente Próximo, onde se acreditava que Deus governava o mundo de maneira justa e previsível, de forma que o sofrimento só poderia ser explicado como resultado de alguma transgressão humana. Essa teologia da retribuição permeia grande parte da literatura sapiencial do Antigo Testamento, e os amigos de Jó são os seus porta-vozes mais fervorosos.

No entanto, o que torna esses diálogos tão relevantes e profundos é a tensão que se estabelece entre a experiência de Jó – um homem justo que sofre de forma inexplicável – e as respostas tradicionais oferecidas pelos seus amigos. À medida que Elifaz, Bildade e Zofar tentam convencer Jó de que seu sofrimento deve ser resultado de algum pecado oculto ou não confessado, Jó, em contrapartida, se mantém firme em sua defesa de inocência, questionando a equidade de Deus. Esse impasse reflete um conflito mais amplo entre a fé inabalável em um Deus justo e a realidade desconcertante de um mundo onde a injustiça e o sofrimento aparentemente imerecido ocorrem.

Elifaz, Bildade e Zofar, apesar de suas boas intenções, são limitados pela sua visão estreita e convencional. Cada um deles oferece uma perspectiva que, de algum modo, condena Jó, sem conseguir sondar as profundezas do mistério do sofrimento humano. Elifaz se apoia em sua experiência pessoal e espiritual, sugerindo que a disciplina divina é a resposta natural para o sofrimento. Bildade, por sua vez, é o tradicionalista, que apela à sabedoria dos antigos e vê o sofrimento como um sinal evidente da justiça de Deus em ação. Zofar é o mais impaciente e severo, acusando Jó de presunção e insistindo que ele está sendo tratado com menos severidade do que merece. Nenhum deles, porém, é capaz de ver além do paradigma da retribuição, o que os impede de compreender a verdadeira natureza do sofrimento de Jó.

Eliú, o quarto personagem a intervir, traz uma nova perspectiva, adicionando complexidade ao debate. Embora critique tanto Jó quanto seus amigos, Eliú propõe que o sofrimento pode ser pedagógico, uma ferramenta que Deus usa para ensinar e corrigir, e não meramente punitivo. Eliú tenta transcender a visão limitada dos outros amigos, apontando para um Deus que é soberano e justo, mas cujos caminhos são mais elevados do que a compreensão humana. Ele prepara o terreno para a intervenção direta de Deus, onde as respostas definitivas, ou a falta delas, se tornam claras.

FRENTE A FRENTE COM CADA UM DOS TRÊS

 

“Os amigos de Jó, conforme descrito no livro de Jó, representam a teologia da retribuição que prevalecia no Antigo Oriente Próximo. Eles acreditavam que o sofrimento é sempre uma consequência direta do pecado e que a justiça divina opera de maneira previsível e proporcional. Essa perspectiva é evidente em seus discursos, que tentam convencer Jó de que seu sofrimento deve ser uma punição por algum pecado oculto. No entanto, a narrativa do livro subverte essa visão, demonstrando que o sofrimento pode ocorrer de maneiras que transcendem a explicação simplista da retribuição divina. Assim, os amigos de Jó, com suas intenções bem-educadas, acabam por ilustrar a insuficiência das respostas teológicas convencionais diante do mistério do sofrimento humano.”

 John Walton, professor de Antigo Testamento na Wheaton College

O papel de cada um dos amigos, portanto, vai além de meras figuras de consolo que falham em sua missão. Eles são personagens essenciais para o desenvolvimento teológico do livro, permitindo que o autor explore as insuficiências das explicações humanas tradicionais para o sofrimento. Suas falas expõem os limites da sabedoria humana quando confrontada com o mistério divino, enquanto a resistência de Jó à simplificação dessas respostas ressalta a complexidade da fé em meio à dor. Ao final, a presença dos amigos de Jó serve como um contraponto necessário para a revelação final de Deus, que desfaz as tentativas humanas de justificar o sofrimento com base em uma teologia simplista, conduzindo a uma visão mais profunda e misteriosa da soberania divina.

Essa dinâmica entre Jó e seus amigos convida o leitor a refletir sobre o papel do sofrimento na vida humana e a maneira como as respostas tradicionais, embora frequentemente bem-intencionadas, podem ser insuficientes diante de realidades mais profundas e inexplicáveis. Vamos falar sobre os três amigos de Jó, além do quarto jovem que também interage com ele no decorrer da narrativa. Esses personagens desempenham papéis fundamentais no desenvolvimento do diálogo sobre o sofrimento, a justiça divina e a experiência humana. Vamos a uma análise mais detalhada, com base nas referências bíblicas, históricas e teológicas disponíveis:

1. ELIFAZ, O TEMANITA

Referências bíblicas: Jó 4–5; 15; 22.

Elifaz é o primeiro a falar com Jó, e o fato de ser mencionado primeiro em várias ocasiões sugere que ele talvez fosse o mais velho ou o mais respeitado entre os amigos. Ele é descrito como um temanita, o que indica sua origem em Temã, uma cidade em Edom, descendente de Esaú (cf. Gênesis 36:11). Historicamente, Temã era conhecida por sua sabedoria (Jeremias 49:7), o que pode indicar que Elifaz era um homem considerado sábio e experiente.

Teologia e Argumentação:

Elifaz é o mais filosófico dos amigos de Jó e sua visão do sofrimento é baseada na retribuição direta. Ele argumenta que Deus é justo e que o sofrimento é o resultado inevitável do pecado. Elifaz apela à sua experiência pessoal, afirmando que "os que lavram a iniquidade e semeiam o mal, isso mesmo colhem" (Jó 4:8). Ele também relata uma experiência espiritual, na qual uma voz sobrenatural lhe revelou que nenhum homem pode ser mais justo que Deus (Jó 4:12-21).

Elifaz defende que Jó deve aceitar seu sofrimento como disciplina divina e buscar arrependimento. Sua posição teológica está enraizada na crença em um Deus que sempre recompensa os justos e pune os ímpios, uma perspectiva comum nas sabedorias antigas. No entanto, ele não consegue entender que o sofrimento de Jó é um teste de sua fé e integridade, e não uma punição por pecados específicos.

2. BILDADE, O SUÍTA

Referências bíblicas: Jó 8; 18; 25.

Bildade, o suíta, é o segundo amigo a falar. A origem de Bildade é atribuída aos suítas, uma tribo mencionada no Antigo Testamento como descendentes de Abraão com Quetura (cf. Gênesis 25:2). Sua postura é mais rigorosa que a de Elifaz e ele apela para a tradição e a sabedoria dos antigos como base de sua argumentação (Jó 8:8-10).

Teologia e Argumentação:

Bildade representa uma abordagem mais legalista e dogmática. Ele afirma que Deus não perverte a justiça e que Jó deve ter pecado, pois seus filhos foram destruídos por causa de sua transgressão (Jó 8:4). Ele destaca a transitoriedade do ser humano e compara a existência do ímpio a uma planta que é arrancada e morre (Jó 8:11-19). Seu argumento é que Jó deve buscar a Deus em arrependimento, pois Deus restauraria sua fortuna se ele fosse verdadeiramente justo.

Teologicamente, Bildade representa o tradicionalismo rígido, onde o sofrimento sempre resulta do pecado. Sua visão se aproxima de uma teodiceia retributiva simples, ignorando as nuances da vida humana e a complexidade do relacionamento entre Deus e o homem. Como Elifaz, Bildade também falha em reconhecer que o sofrimento de Jó é uma provação divina, e não uma consequência direta do pecado.

3. ZOFAR, O NAAMATITA

Referências bíblicas: Jó 11; 20.

Zofar, o naamatita, é o terceiro a falar e também o mais severo e direto dos amigos. Sua origem está em Naamá, embora a localização exata não seja clara, podendo se referir a uma cidade na região de Canaã (Josué 15:41) ou relacionada à descendência de Caim (Gênesis 4:22). Ele fala menos do que os outros amigos, mas suas palavras são particularmente duras e veementes.

Teologia e Argumentação:

Zofar assume uma postura extremamente rígida. Ele acredita que Jó não está sendo punido o suficiente pelo que merece (Jó 11:6). Sua teologia é simples e direta: Deus é justo e Jó é culpado de algum pecado não confessado. Ele acusa Jó de falar demais e de não conhecer os mistérios de Deus. Zofar afirma que a única solução para o sofrimento de Jó é o arrependimento. Ele defende que Deus é insondável e, portanto, o homem não pode questionar Seus caminhos (Jó 11:7-9).

Zofar representa uma teologia ainda mais extrema de retribuição. Ele não apenas acredita que Jó é pecador, mas também expressa a visão de que os caminhos de Deus são impenetráveis e que Jó deveria aceitar sua condição sem questionar. Sua visão teológica é simplista e impiedosa, sugerindo que o sofrimento de Jó é justificado por alguma culpa secreta.

4. ELIÚ, O BUZITA

Referências bíblicas: Jó 32–37.

Eliú, o quarto e mais jovem personagem a falar, aparece mais tarde no texto, após a troca de discursos entre Jó e os três amigos. Ele é descrito como buzita, descendente de Buz, uma tribo mencionada em Gênesis 22:21. Eliú entra na discussão indignado tanto com Jó quanto com seus amigos: com Jó, por justificar-se diante de Deus, e com os amigos, por falharem em apresentar uma defesa satisfatória de Deus.

Teologia e Argumentação:

Eliú oferece uma nova perspectiva. Ele acredita que o sofrimento pode ter um propósito educativo e corretivo, e não necessariamente ser uma punição pelo pecado. Ele aponta que Deus fala de várias maneiras – inclusive por meio do sofrimento – para ensinar e corrigir o ser humano (Jó 33:14-30). Eliú defende que Jó está errado ao questionar a justiça de Deus, mas também critica os três amigos por não entenderem a verdadeira razão do sofrimento de Jó.

Eliú, apesar de ser jovem, demonstra uma visão teológica mais equilibrada e profunda em comparação com os outros. Ele reconhece que Deus usa o sofrimento para revelar algo ao ser humano, para discipliná-lo e preservá-lo do mal maior (Jó 36:10-15). Seu discurso é o último antes de Deus falar diretamente com Jó e é geralmente visto como uma transição para a resposta final de Deus.

CONCLUSÃO

Cada um desses personagens representa diferentes abordagens e teologias sobre o sofrimento humano e a justiça divina:

•  Elifaz traz a experiência e a sabedoria dos antigos, com uma visão filosófica, mas limitada, da justiça divina.

•  Bildade é o tradicionalista rígido, que acredita em uma visão estática de retribuição.

•  Zofar é o mais severo e impiedoso, enfatizando que o ser hu-mano não pode questionar a justiça de Deus.

•  Eliú, por outro lado, oferece uma visão mais madura e teologicamente sofisticada, destacando que o sofrimento pode ter um propósito educacional e redentor, preparando o caminho para a intervenção de Deus.

Essas diferentes vozes enriquecem a narrativa, oferecendo uma gama de perspectivas sobre questões como justiça, sofrimento e a relação entre Deus e o ser humano.

terça-feira, 28 de maio de 2024

Exercício 4 - Desventuras apesar da fé e vice-versa

Por Jânsen Leiros Jr.

 

 13Sucedeu um dia, em que seus filhos e suas filhas comiam e bebiam vinho na casa do irmão primogênito,14 que veio um mensageiro a Jó e lhe disse: Os bois lavravam, e as jumentas pasciam junto a eles;15 de repente, deram sobre eles os sabeus, e os levaram, e mataram aos servos a fio de espada; só eu escapei, para trazer-te a nova.16 Falava este ainda quando veio outro e disse: Fogo de Deus caiu do céu, e queimou as ovelhas e os servos, e os consumiu; só eu escapei, para trazer-te a nova.17 Falava este ainda quando veio outro e disse: Dividiram-se os caldeus em três bandos, deram sobre os camelos, os levaram e mataram aos servos a fio de espada; só eu escapei, para trazer-te a nova.18 Também este falava ainda quando veio outro e disse: Estando teus filhos e tuas filhas comendo e bebendo vinho, em casa do irmão primogênito,19 eis que se levantou grande vento do lado do deserto e deu nos quatro cantos da casa, a qual caiu sobre eles, e morreram; só eu escapei, para trazer-te a nova.

20 Então, Jó se levantou, rasgou o seu manto, rapou a cabeça e lançou-se em terra e adorou;21 e disse: Nu saí do ventre de minha mãe e nu voltarei; o Senhor o deu e o Senhor o tomou; bendito seja o nome do Senhor!22 Em tudo isto Jó não pecou, nem atribuiu a Deus falta alguma.

Jó 1:13-22 - ARA 

 

 

Reflexão sobre a Resiliência de Jó: Teologia e Perseverança na Fé

Finalizando nossa incursão pelo primeiro capítulo do Livro de Jó, chegamos à sequência devastadora de calamidades que acometem nosso herói. Um homem íntegro e temente a Deus, cujo testemunho a narrativa atribui ao próprio Criador, é subitamente acometido por uma série de infortúnios devastadores, perdendo seus bens, seus servos e, tragicamente, todos os seus filhos. Este trecho, que descreve as calamidades que se abatem sobre Jó, serve como um prelúdio para a exploração profunda dos temas centrais do livro: a natureza do sofrimento humano, a justiça divina e a perseverança na fé. A reação de Jó a esses eventos, que aponta para uma fé inabalável e uma submissão total à soberania de Deus, estabelece o tom para as discussões teológicas subsequentes e completa a moldura que enquadrará todo desenvolvimento do livro.

No trecho que lemos acima, cada mensageiro que chega traz uma notícia pior que a anterior, culminando em uma situação de completa angústia e luto, pelo tsunami de tragédias que lhe são comunicadas. A reação de Jó a essas tragédias é particularmente notável e merecerá uma análise aprofundada adiante. Antes, porém, nos deteremos em uma análise que pode ser um tanto inusitada para alguns, mas extremamente relevante para nossos estudos à frente.

A Pretensão Teológica da Narrativa das Tragédias em Série

A estrutura narrativa das tragédias que se abatem sobre Jó pode ser entendida não apenas como um relato dramático, mas como uma construção teológica intencional. A sequência rápida e devastadora dos eventos, parece projetada para destacar a reação imediata e instintiva de Jó, sublinhando a natureza intuitiva e devocional de sua fé. Além disso, essa estrutura narrativa também serve para evidenciar a inocência de Jó, esclarecendo que seu sofrimento não é consequência de más escolhas ou atos pecaminosos. Ou seja, a avalanche sobre Jó ambienta as seguintes questões do livro:

Fundamentos Bíblicos e Teológicos

1.  A Soberania de Deus: A rapidez e a intensidade das tragédias reforçam a soberania absoluta de Deus. Jó reconhece que tudo vem de Deus, e essa percepção é fundamental para a teologia do livro. A reação de Jó Nu saí do ventre de minha mãe e nu voltarei; o Senhor o deu e o Senhor o tomou; bendito seja o nome do Senhor! - Jó 1:21, demonstra uma aceitação total da vontade divina, sem tempo para uma reação racionalizada. Isso é consistente com outras partes da Bíblia que enfatizam a soberania de Deus, como em Isaías 45:7, onde Deus diz Eu formo a luz e crio as trevas; faço a paz e crio o mal; eu, o Senhor, faço todas essas coisas[1].

2.  A Natureza do Sofrimento: O modelo da narrativa serve ainda para mostrar a natureza abrupta e inexplicável do sofrimento. Em Eclesiastes 9:12, lemos Pois o homem não conhece a sua hora; como peixes que se apanham com a rede traiçoeira, e como passarinhos que se prendem com laço, assim se enlaçam os filhos dos homens no mau tempo, quando este cai de repente sobre eles. Essa passagem sugere que o sofrimento pode ocorrer de maneira repentina e avassaladora, sem dar tempo para uma análise racional detalhada.

3.  Fé Intuitiva versus Racionalidade: A construção narrativa das calamidades de Jó destaca uma fé que é intuitiva e baseada na confiança na soberania de Deus, em vez de uma resposta calculada. Jesus também ressalta a importância de uma fé pura e intuitiva em Marcos 10:15. Em verdade vos digo que qualquer que não receber o reino de Deus como uma criança, de maneira nenhuma entrará nele. A fé de uma criança é instintiva e total, semelhante à reação de Jó[2].

4.  Sofrimento Não Retributivo: A sequência das calamidades que ocorrem sobre Jó também serve para deixar claro que seu sofrimento não é retributivo. Jó é descrito como homem íntegro e reto, temente a Deus e que se desvia do mal (Jó 1:1). A ausência de qualquer menção de pecado ou falha de Jó no contexto das calamidades destaca sua inocência. Este ponto é crucial para a discussão teológica subsequente entre Jó e seus amigos, que erroneamente associam seu sofrimento a algum pecado oculto. A Bíblia reitera essa visão em João 9:1-3, onde Jesus cura um cego de nascença e explica que a cegueira do homem não era resultado de pecado, mas para que as obras de Deus se manifestem nele[3].

A Resposta de Jó: Fé e Adoração

Agora olhando para a reação de Jó propriamente dita, após a notícia da morte de seus filhos, ele rasga suas vestes, rapa a cabeça e se prostra em terra[4]. Esses gestos são expressões tradicionais de luto e dor na cultura antiga, simbolizando uma profunda aflição. No entanto, a reação verbal de Jó transcende a mera expressão de sofrimento:

"Nu saí do ventre de minha mãe e nu voltarei; o Senhor o deu e o Senhor o tomou; bendito seja o nome do Senhor!" (Jó 1:21)[5]

Aqui, Jó reconhece a soberania de Deus sobre todas as coisas. Sua declaração mostra uma compreensão teológica profunda de que tudo o que possui, incluindo sua própria vida, é um dom de Deus. A aceitação de Jó da vontade divina, sem atribuir a Deus culpa ou injustiça, reflete uma fé inabalável.

Teólogos como Agostinho e Tomás de Aquino comentaram sobre a figura de Jó como exemplo de paciência e submissão à vontade divina. Agostinho, em suas obras, vê em Jó um símbolo da fortaleza espiritual, alguém que, apesar das tribulações, não perdeu sua integridade nem blasfemou contra Deus. Já Tomás de Aquino, na "Suma Teológica", destaca que Jó é um exemplo de virtude porque mantém sua fé e retidão moral apesar do sofrimento. Ele argumenta que Jó compreende a natureza transitória dos bens materiais e a suprema autoridade de Deus sobre todas as coisas.

O livro de Jó lida com a questão do sofrimento do justo e a justiça de Deus. A reação de Jó aos seus infortúnios está diretamente ligada ao tema central: a busca por compreensão do propósito do sofrimento humano sob a ótica da justiça divina. Jó não conhece a razão de seu sofrimento, mas escolhe confiar em Deus.

A história de Jó nos ensina que a fé verdadeira envolve aceitar tanto os dons quanto as provações de Deus com um coração submisso e adorador. Jó não apenas sobrevive ao sofrimento, mas o transforma em uma oportunidade para reafirmar sua confiança em Deus. Sua resposta diante das calamidades é um testemunho poderoso de resistência espiritual e entrega incondicional à vontade divina.

O trecho final do capítulo um, portanto, nos desafia a refletir sobre nossa própria fé. Estamos prontos a bendizer o nome do Senhor em meio às tempestades da vida? Jó nos mostra que é possível adorar a Deus não apesar do sofrimento, mas através dele, reconhecendo sempre a Sua soberania e bondade, mesmo quando não compreendemos os Seus caminhos.



[1] Karl Barth: Barth, em sua teologia dialética, enfatiza a transcendência e a soberania de Deus. Ele argumenta que a revelação de Deus em Jesus Cristo é paradoxal e surpreendente, desafiando a racionalidade humana. Esse conceito pode ser aplicado à narrativa de Jó, onde a soberania de Deus se manifesta de forma inesperada e devastadora, exigindo uma resposta de fé imediata e intuitiva.

[2] Dietrich Bonhoeffer: Bonhoeffer fala da “fé simples” que se apega a Deus em meio às complexidades e sofrimentos da vida. Ele sugere que a verdadeira fé não é construída através de um processo racional, mas através de uma confiança inabalável em Deus, especialmente em tempos de crise.

[3] Gustavo Gutiérrez: Em "On Job: God-Talk and the Suffering of the Innocent," Gutiérrez argumenta que o sofrimento de Jó é uma reflexão sobre a injustiça e a ausência de retribuição automática, desafiando a teologia da retribuição simples. Ele sugere que o sofrimento de Jó é uma plataforma para discutir a fidelidade e a justiça de Deus em um contexto onde o sofrimento não é merecido.

[4] As ações de Jó ao rasgar suas vestes, rapar a cabeça e se prostrar em terra são gestos de luto e dor profundamente enraizados nas culturas do antigo Oriente Médio, incluindo as civilizações hebraica, cananeia, egípcia, assíria e babilônica. Esses atos eram manifestações externas de sofrimento e respeito pelas tragédias e perdas pessoais.

Na cultura hebraica, as atitudes de Jó tinham os seguintes significados:

Rasgar as Vestes

·         Significado: Rasgar as vestes era um símbolo de profunda tristeza e luto. Era um gesto de desespero e angústia, representando a ruptura do estado emocional do indivíduo.

·         Fundamento Bíblico: Este ato é frequentemente mencionado na Bíblia. Em Gênesis 37:34, Jacó rasga suas vestes ao ouvir sobre a suposta morte de seu filho José. Em 2 Samuel 1:11, Davi rasga suas vestes ao saber da morte de Saul e Jônatas.

Rapar a Cabeça

·         Significado: Rapar a cabeça simbolizava humilhação e lamentação. Era um sinal de submissão diante de uma calamidade e uma expressão de luto.

·         Fundamento Bíblico: Em Isaías 22:12, Deus chama o povo ao luto, incluindo rapar a cabeça e vestir-se de pano de saco. Jeremias 7:29 também menciona este ato como um símbolo de lamentação.

Prostrar-se em Terra

·         Significado: Prostrar-se em terra era uma expressão de humildade e submissão completa a Deus. Era um ato de adoração e rendição à vontade divina.

·         Fundamento Bíblico: Jó se prostra em terra para adorar (Jó 1:20), mesmo em meio ao sofrimento. Esse ato é também visto em Gênesis 17:3, onde Abraão se prostra diante de Deus.

[5] Jó 1:21, é um dos mais citados e comentados nas escrituras, com profundos significados teológicos. A seguir, apresento alguns dos principais comentários teológicos sobre este trecho e o que disseram teólogos renomados:

1. John Calvin (João Calvino)

·         Comentário: Calvino destaca a aceitação da soberania de Deus e a submissão total de Jó à vontade divina. Para ele, este versículo exemplifica a verdadeira piedade e a confiança em Deus, mesmo em meio à adversidade.

·         Citação: “Jó reconhece a mão de Deus em tudo o que lhe aconteceu, e ao invés de reclamar, ele bendiz a Deus, mostrando uma fé que não depende das circunstâncias.”

2. Matthew Henry

·         Comentário: Henry vê este versículo como um exemplo de resignação cristã e humildade. Ele ressalta que Jó não apenas reconhece a soberania de Deus, mas também encontra motivo para louvar a Deus em meio ao sofrimento.

·         Citação: “Jó nos ensina a bendizer a Deus não apenas quando Ele dá, mas também quando Ele tira. Ele nos mostra que tudo o que temos é um dom de Deus, e portanto, devemos estar prontos para dar glória a Deus em todas as situações.”

3. Thomas Aquinas (Tomás de Aquino)

·         Comentário: Aquino interpreta este versículo dentro do contexto da teodiceia, explorando a questão do sofrimento e da justiça divina. Ele argumenta que Jó reconhece a justiça e a bondade de Deus, independentemente das circunstâncias.

·         Citação: “Jó reconhece que o ser humano vem ao mundo sem nada e nada leva quando parte. Esta visão sublinha a dependência total do homem em relação a Deus e a justiça divina em todas as ações.”

4. Gustavo Gutiérrez

·         Comentário: Em sua obra “On Job: God-Talk and the Suffering of the Innocent,” Gutiérrez vê a declaração de Jó como um reconhecimento de que a justiça de Deus transcende a compreensão humana e que a fé verdadeira envolve confiar em Deus mesmo na ausência de explicações racionais para o sofrimento.

·         Citação: “Jó nos ensina que a fé verdadeira não é uma barganha com Deus, mas uma confiança incondicional. Através de sua aceitação do sofrimento, Jó nos mostra que a justiça e a bondade de Deus estão além da nossa compreensão.”

5. Karl Barth

·         Comentário: Barth vê a declaração de Jó como um exemplo de fé dialética, onde a relação do homem com Deus é marcada por uma tensão entre desespero e esperança. Ele argumenta que a reação de Jó representa um reconhecimento da soberania absoluta de Deus.

·         Citação: “A fé de Jó é paradoxal, pois ao mesmo tempo em que ele sofre profundamente, ele também louva a Deus. Esta é a essência da verdadeira fé, uma aceitação radical da soberania de Deus sobre todas as coisas.”

6. Dietrich Bonhoeffer

·         Comentário: Bonhoeffer interpreta a reação de Jó como uma expressão de fé inabalável e uma demonstração de que a verdadeira adoração a Deus não depende das circunstâncias. Ele vê em Jó um exemplo de como a fé pode resistir ao teste do sofrimento.

·         Citação: “Jó mostra que a verdadeira fé não é um contrato com Deus, mas uma rendição completa à Sua vontade. Ao dizer 'bendito seja o nome do Senhor', Jó afirma que Deus é digno de louvor independentemente de nossas circunstâncias.”

 

terça-feira, 30 de abril de 2024

Exercício 3 - O mal como subordinado?

Por Jânsen Leiros Jr.

 

 “ 6Num dia em que os filhos de Deus vieram apresentar-se perante o Senhor, veio também Satanás entre eles.7 Então, perguntou o Senhor a Satanás: Donde vens? Satanás respondeu ao Senhor e disse: De rodear a terra e passear por ela.8 Perguntou ainda o Senhor a Satanás: Observaste o meu servo Jó? Porque ninguém há na terra semelhante a ele, homem íntegro e reto, temente a Deus e que se desvia do mal.9 Então, respondeu Satanás ao Senhor: Porventura, Jó debalde teme a Deus?10 Acaso, não o cercaste com sebe, a ele, a sua casa e a tudo quanto tem? A obra de suas mãos abençoaste, e os seus bens se multiplicaram na terra.11 Estende, porém, a mão, e toca-lhe em tudo quanto tem, e verás se não blasfema contra ti na tua face.12 Disse o Senhor a Satanás: Eis que tudo quanto ele tem está em teu poder; somente contra ele não estendas a mão. E Satanás saiu da presença do Senhor.

Jó 1:6-12 

 

 

E satanás se apresenta a Deus entre seus filhos...  Como assim?

Presente no prólogo como uma espécie de explicação antecipada da natureza do sofrimento que Jó experimentará em breve, essa é, seguramente, uma das mais intrigantes e questionadas cenas bíblicas. O que satanás estava fazendo no céu? E para piorar, entre os filhos de Deus? Esta é uma pergunta que os alunos me fazem em quase todo início de estudos em Jó. Todavia, muito mais interessante do que a pergunta, são as teorias que elaboram ou tomam emprestadas, quando devolvo a questão à classe, incentivando que esbocem eles mesmos hipóteses plausíveis.

É claro que a presença de Satanás entre os filhos de Deus é um aspecto inquietante, que incitou diversas interpretações e teorias ao longo da história, e, obviamente, ainda incita. E é por isso que aqui precisaremos realizar um rápido mas necessário aprofundamento da questão, pois entendo que aquilo que concluirmos a respeito dessa intrigante questão, nos auxiliará bastante na compreensão do propósito primordial do livro.

Ampliando hipóteses

Para esse aprofundamento, um olhar multidisciplinar se faz necessário, para percebermos a variedade de ilações e teorias propostas, não apenas por teólogos, mas também por filósofos, sociólogos, historiadores e arqueólogos, que se debruçaram ou não sobre a presença de Satanás entre os filhos de Deus na narrativa de Jó, mas que, porém, sempre se ocupam em avaliar a dualidade concomitante do bem e do mal no cotidiano da vida humana. Esses olhares adjacentes poderão ampliar nosso campo de observação, melhorando nossa assertividade sobre a questão.

Interpretação Psicológica

Alguns psicólogos e estudiosos da mente humana sugerem que a figura de Satanás pode ser uma projeção dos medos e desafios internos de Jó. Nessa perspectiva, a presença de Satanás entre os filhos de Deus representaria os conflitos internos e as tentações que Jó enfrenta em sua jornada[1]. Satanás seria uma espécie de ameaça à manutenção dos ciclos de boas obras-recompensas, comum na crença à época.

Essa interpretação acerta ao pontuar a questão retributiva como pertinente ao conteúdo do livro. É essa, inclusive, a mecânica crida pelos amigos de Jó, como a forma de condução divina. Porém, ao categorizar Satanás como uma possível construção mental de Jó, esquece que o personagem não está presente na cena em questão, sendo muito mais uma circunstância que o atingirá, do que uma condição sobre a qual racionalizará diante dos fatos que o levarão ao sofrimento.

Interpretação Sociológica

Sociólogos e antropólogos podem abordar essa passagem como uma reflexão sobre as estruturas de poder e autoridade na sociedade humana. A presença de Satanás entre os filhos de Deus pode ser interpretada como uma metáfora para as forças malignas que permeiam as estruturas sociais e religiosas, desafiando a ordem estabelecida[2].

Outra abordagem bastante interessante, com generosas pitadas de atualidade. Ou não é verdade que o que não nos tem faltado ultimamente são lobos em peles de cordeiros? Porém, e de novo, a narrativa exclui Jó da cena em que Deus e satanás conversam; ele não a presenciou. O que significa que Jó não teria como empreender racionalização dos fatos que antecedem sua tragédia. Além disso, uma eventual metáfora de forças malignas infiltradas, conduziria Jó a um entendimento de que seu sofrimento parte de um descuido de Deus, em deixar que um ser maligno se imiscuísse em seus planos, prejudicando a perfeição de sua providência. O que logo após as tragédias, podemos perceber que não foi o pensamento de Jó. Deus deu, Deus tirou.  Para Jó, Deus seguia no controle, apesar dos infortúnios que lhe abateram.

Interpretação Histórica

Historiadores e arqueólogos podem analisar essa passagem à luz do contexto histórico e cultural em que foi escrita. Eles podem explorar como as crenças sobre seres espirituais e divindades eram compreendidas na antiguidade, e como essas visões influenciaram a narrativa de Jó[3].

Talvez essa seja uma abordagem mais potente em possibilidades, uma vez que a análise contextual e contemporânea situa, no tempo, o conceito vivenciado por pessoas de uma determinada época sobre o sagrado e suas interações com a humanidade. E no capítulo introdutório de Jó, o que no capítulo anterior chamamos de moldura, fica claro que a narrativa se utiliza da crença vigente sobre tudo aquilo que apresenta, não sendo novidade, nem para quem escrevia, e nem para quem o ouviria, o fato de que Satanás estaria, quase que obviamente, entre os filhos de Deus que lhes prestam contas.

Interpretação Filosófica

Filósofos podem oferecer uma análise metafísica sobre a presença de Satanás entre os filhos de Deus. Eles podem explorar questões sobre o livre-arbítrio, o problema do mal e a natureza da dualidade entre o bem e o mal, buscando entender o papel de Satanás dentro desse contexto[4].

Essa é também uma abordagem bastante interessante, se considerarmos o problema do mal como um tema tratado no livro de Jó, ainda que não o tenha como questão central da narrativa. Também os amigos de Jó trabalharão hipóteses ligadas a esta dualidade, o que de alguma forma abre espaço para uma argumentação filosófica que pode ser significativa. A questão do livre-arbítrio, no entanto, não se aplicaria aqui de forma alguma, uma vez que aquilo que se abate sobre o personagem central da narrativa, não é consequência de qualquer atitude ou escolha sua, seja equivocada ou não. Seu sofrimento não é efeito cuja causa esteja em Jó, ou lhe seja responsabilidade direta ou indireta.

Interpretação Teológica Clássica

Muitos teólogos tradicionais interpretam essa passagem como uma manifestação da soberania de Deus sobre todas as criaturas, incluindo Satanás. Segundo essa visão, Satanás comparece perante Deus como parte de uma corte celestial, onde os seres espirituais prestam contas de suas ações[5].

A abordagem teológica parte de uma base consistente e pertinente em relação ao conteúdo da introdução. Colocando o mal como um subordinado de Deus, tanto o leitor quanto o ouvinte de Jó se deparam com o que poderemos chamar de um salto definitivo na revelação de Deus ao mundo. Jeová já não é mais um dentre tantos outros deuses. É como se a compreensão sobre Ele ganhasse em profundidade e sustentação, pois um dos maiores enigmas universais, se tornava totalmente simples e claro; o Deus único e soberano está no comando de tudo!

A cena em que Satanás conversa com o Senhor, nos leva a refletir sobre a soberania de Deus sobre todo o universo, inclusive sobre seres espirituais, quer sejam eles bons, quer sejam maus. A presença de Satanás diante de Deus pode ser vista como parte de um grande plano divino, onde até mesmo o adversário é submetido à autoridade e ao governo de Deus. O que para muitos, eu entendo, seja uma compreensão diferente, nova e extremamente desafiadora. Ou seja, a narrativa do livro de Jó nos mostra, desde o seu início, que Satanás não está fora do alcance do conhecimento e da providência divina, ainda que apenas e tão somente como um agente, estando totalmente ao dispor da vontade do Criador.

A interação entre Deus e Satanás nesse episódio nos leva a considerar a profundidade da soberania divina e a complexidade das relações entre o bem e o mal, entre o divino e o maligno, que não se interpõem como inimigos que se confrontem diametralmente, sendo, contudo, excludentes entre si. Essa passagem desafia nossa compreensão e nos convida a contemplar a sabedoria e o poder de Deus, ambos muito além dos limites humanos.

Equilibrando as opiniões

Ora, o entendimento teológico mais equilibrado e comumente aceito sobre o encontro entre Deus e Satanás narrado em Jó 1:6-12, portanto, é que o evento se dá em um contexto evidente de absoluta soberania sobre todas as coisas criadas; todos prestam contas a Deus. Nesse encontro, Satanás é descrito como vindo entre os filhos de Deus para apresentar-se diante do Senhor, a quem deve prestar contas de tudo, sempre. Ele não se manda! Voltaremos a este nó mais adiante.

De acordo com essa interpretação, Satanás não está presente diante de Deus como um igual ou como alguém que tem autoridade independente, mas sim como um criado por Deus e submetido à sua soberania. A presença de Satanás nesta corte celestial sugere que ele é apenas uma das muitas criaturas que estão submissas a Deus.

O Senhor, portanto, tem poder sobre todas as coisas, incluindo Satanás e os poderes do mal. E embora o diabo aja de forma malévola dispondo-se a desviar homens do caminho da justiça, ele não está livre do controle ou da autoridade de Deus. Assim, o encontro entre Deus e Satanás na passagem de Jó é visto como parte do plano soberano de Deus para exercitar a fé e a fidelidade de Jó, e não como uma indicação de que Satanás tenha poder ou autoridade em si mesmo sobre o que quer que seja. Logo, Jó só passou pelo que passou, porque Deus quis. Sua providência sempre esteve no controle. O Senhor sabia. Nós sabíamos. Somente o provado Jó que não. Mas até isso também era providencial.

 



[1] Na psicologia e nos estudos da mente humana, diversas abordagens podem ser aplicadas para compreender a figura de Satanás como uma projeção dos medos e desafios internos de Jó. Embora não haja consenso absoluto entre os psicólogos sobre essa interpretação específica, alguns estudiosos e teóricos têm explorado temas relacionados à psicologia da religião, à psicanálise e à psicologia do desenvolvimento para oferecer insights sobre a natureza dessa perspectiva. Aqui estão alguns exemplos de psicólogos e suas obras que abordam questões semelhantes:

1.       Sigmund Freud: O fundador da psicanálise, Sigmund Freud, explorou extensivamente os temas do inconsciente, da sexualidade e da religião em sua obra. Embora não tenha se concentrado especificamente em Jó, suas teorias sobre os mecanismos de defesa, o complexo de Édipo e a interpretação dos sonhos podem oferecer insights sobre como os conflitos internos podem se manifestar em formas simbólicas, como a figura de Satanás.

2.       Carl Gustav Jung: Jung, outro influente psicólogo e fundador da psicologia analítica, desenvolveu conceitos como o inconsciente coletivo, os arquétipos e a individuação. Em sua obra "Psychology and Religion", Jung discute a natureza dos símbolos religiosos e sua relevância para a psique humana. Ele poderia oferecer uma interpretação mais simbólica da presença de Satanás entre os filhos de Deus, destacando-o como um arquétipo do mal presente na psique de Jó.

3.       Erich Neumann: Neumann, discípulo de Jung, expandiu as ideias do mestre sobre o inconsciente coletivo e os arquétipos. Em obras como "The Great Mother" e "Depth Psychology and a New Ethic", ele explora os temas da religião, mitologia e psicologia em relação ao desenvolvimento humano e à sociedade. Embora não tenha tratado especificamente do livro de Jó, suas teorias sobre os complexos e símbolos podem ser aplicadas para entender a presença de Satanás como uma expressão dos conflitos internos de Jó.

Esses psicólogos e seus trabalhos oferecem uma variedade de perspectivas e ferramentas conceituais para analisar a complexidade da mente humana e sua relação com temas religiosos e espirituais, incluindo a presença de figuras como Satanás no contexto bíblico.

[2] Vários sociólogos e antropólogos oferecem interpretações sobre questões relacionadas ao poder, autoridade e religião, que podem ser aplicadas à passagem de Jó 1:6-12. Embora nem todos tenham abordado especificamente essa passagem bíblica, suas teorias e análises sobre estruturas sociais e religiosas podem oferecer insights relevantes. Aqui estão alguns exemplos de sociólogos e suas obras que discutem temas semelhantes:

1.       Max Weber: Weber é conhecido por suas análises sobre a relação entre religião e sociedade. Em sua obra "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo", ele explora como as crenças religiosas influenciam o comportamento econômico e social. Embora não tenha abordado diretamente a figura de Satanás, suas ideias sobre autoridade e poder na religião podem ser aplicadas para entender a presença de forças malignas desafiando a ordem estabelecida.

2.       Émile Durkheim: Durkheim é um dos fundadores da sociologia moderna e estudou extensivamente a relação entre religião e sociedade em obras como "As Formas Elementares da Vida Religiosa". Ele argumenta que a religião desempenha um papel fundamental na coesão social e na manutenção da ordem moral. Sua análise das estruturas sociais e rituais religiosos pode oferecer uma perspectiva sobre como a presença de Satanás entre os filhos de Deus reflete as tensões e desafios dentro da ordem social.

3.       Pierre Bourdieu: Bourdieu é conhecido por suas teorias sobre poder, capital cultural e reprodução social. Em obras como "A Distinção" e "Esboço de uma Teoria da Prática", ele examina como as hierarquias sociais são mantidas e reproduzidas por meio de práticas culturais e simbólicas. Embora não tenha se concentrado diretamente em temas religiosos, suas ideias sobre dominação simbólica e lutas de poder podem ser aplicadas para entender a presença de forças malignas desafiando as estruturas de autoridade na passagem de Jó.

Esses sociólogos e suas obras oferecem uma variedade de perspectivas sobre como as estruturas sociais e religiosas podem influenciar e serem influenciadas por questões de poder, autoridade e moralidade, como retratado na passagem de Jó 1:6-12.

[3] Historiadores e arqueólogos frequentemente abordam a interpretação de passagens bíblicas à luz de seus contextos históricos e culturais. Embora nem todos tenham se concentrado especificamente na passagem de Jó 1:6-12, suas análises sobre o mundo antigo podem fornecer insights relevantes. Aqui estão alguns exemplos de historiadores e arqueólogos e suas respectivas obras que poderiam contribuir para essa abordagem:

1.       William Foxwell Albright: Albright foi um arqueólogo e biblista conhecido por suas contribuições para a compreensão do mundo bíblico por meio de evidências arqueológicas. Em obras como "Arqueologia e Religião de Israel" e "De Abraão a Paulo", ele examina como as crenças religiosas e as práticas espirituais eram percebidas e influenciavam a vida cotidiana nas sociedades antigas do Oriente Médio.

2.       Karen Armstrong: Armstrong é uma historiadora das religiões e autora de várias obras sobre o judaísmo, cristianismo e islamismo. Em livros como "Uma História de Deus" e "O Grande Relatório", ela explora as origens e evolução das crenças religiosas ao longo da história, oferecendo insights sobre como as visões de seres espirituais eram entendidas e interpretadas em diferentes contextos culturais.

3.       Roland de Vaux: De Vaux foi um arqueólogo francês e especialista em estudos do Antigo Testamento. Sua obra mais conhecida, "Instituições de Israel no Antigo Testamento", oferece uma análise detalhada das instituições sociais, religiosas e políticas do antigo Israel, fornecendo contexto histórico para a compreensão das narrativas bíblicas, incluindo a história de Jó.

4.       F. F. Bruce: Bruce foi um estudioso do Novo Testamento e historiador do cristianismo primitivo. Em obras como "Jesus e os Manuscritos do Mar Morto" e "A Mensagem dos Manuscritos do Mar Morto", ele investiga as origens do cristianismo e sua relação com o judaísmo do Segundo Templo, oferecendo insights sobre como as crenças e práticas religiosas eram vivenciadas e interpretadas no contexto do mundo antigo.

Esses historiadores e arqueólogos oferecem uma variedade de perspectivas sobre o contexto histórico e cultural em que foram escritas as narrativas bíblicas, incluindo a passagem de Jó 1:6-12. Suas obras podem fornecer insights valiosos sobre como as crenças sobre seres espirituais e divindades eram compreendidas e interpretadas nas sociedades antigas.

[4] Vários filósofos ao longo da história abordaram questões relacionadas ao livre-arbítrio, ao problema do mal e à dualidade entre o bem e o mal, oferecendo insights sobre o papel de Satanás dentro desse contexto. Aqui estão alguns exemplos de filósofos e suas obras que poderiam contribuir para essa análise:

1.       Agostinho de Hipona: Agostinho, em obras como "Confissões" e "A Cidade de Deus", discute extensivamente sobre o livre-arbítrio humano, o problema do mal e a natureza do diabo. Ele desenvolve a ideia de que o mal é a privação do bem e explora como as escolhas humanas podem ser influenciadas pela tentação demoníaca.

2.       Tomás de Aquino: O trabalho de Aquino, especialmente em sua "Suma Teológica", aborda questões metafísicas relacionadas ao livre-arbítrio e ao mal, oferecendo uma análise sistemática da natureza do pecado e da queda do diabo. Ele argumenta sobre a existência de uma ordem divina que inclui tanto o bem quanto o mal, e discute o papel de Satanás nessa ordem.

3.       John Milton: Embora não seja estritamente um filósofo, a obra de Milton, "Paraíso Perdido", é uma epopeia que explora profundamente questões de livre-arbítrio, tentação e queda. O poema apresenta Satanás como um personagem complexo que desafia as concepções tradicionais do mal, fornecendo uma visão literária das questões metafísicas relacionadas ao diabo.

4.       Arthur Schopenhauer: Schopenhauer, em obras como "O Mundo como Vontade e Representação", oferece uma análise filosófica do mal como uma força inerente à natureza humana e ao universo. Ele discute como a vontade humana pode ser influenciada por impulsos irracionais e egoístas, refletindo sobre a natureza do pecado e da tentação.

Esses filósofos e suas obras fornecem diferentes perspectivas sobre o papel de Satanás dentro do contexto metafísico do livre-arbítrio, do problema do mal e da dualidade entre o bem e o mal. Suas análises podem ajudar a compreender as complexidades envolvidas na presença de Satanás entre os filhos de Deus na narrativa bíblica de Jó

 

[5] Essa interpretação da passagem de Jó 1:6-12 como uma manifestação da soberania de Deus sobre todas as criaturas, incluindo Satanás, é comum entre muitos teólogos tradicionais. Aqui estão alguns exemplos de teólogos e suas obras que sustentam essa visão:

1.       Orígenes: Este teólogo cristão do período patrístico, em obras como "Contra Celsum" e "De Principiis", enfatiza a supremacia de Deus sobre todas as coisas, incluindo os seres espirituais. Ele defende a ideia de que mesmo o mal é parte do plano divino e serve aos propósitos de Deus.

2.       Anselmo de Cantuária: Em suas obras, como "Proslogion" e "Cur Deus Homo" (Por que Deus se fez homem), Anselmo discute a soberania divina e a relação entre o bem e o mal, argumentando que Deus é a fonte suprema de todo o ser, e que o mal, incluindo a presença de Satanás, está subordinado à vontade divina. Ele enfatiza a necessidade de compreender o plano divino mesmo diante das aparências do mal no mundo.

3.       Martinho Lutero: Lutero, em seus comentários sobre Jó e em outras obras, enfatiza a doutrina da providência divina e a submissão de todas as criaturas à vontade de Deus. Ele argumenta que mesmo o diabo está sob o controle de Deus e é usado por ele para realizar seus propósitos.

4.       João Calvino: Nos escritos de Calvino, como as "Institutas da Religião Cristã" e seus comentários sobre Jó, ele explora a soberania absoluta de Deus sobre todas as coisas, incluindo o mal. Calvino ensina que Deus governa soberanamente sobre o diabo e o utiliza para cumprir seus desígnios divinos.

Esses teólogos, juntamente com Agostinho e Tomás de Aquino, representam uma tradição teológica que enfatiza a soberania de Deus sobre todas as criaturas, incluindo Satanás, e defende a ideia de que mesmo o mal está subordinado aos propósitos divinos.