Por Jânsen Leiros Jr.
“Os três amigos de Jó desempenham um papel crucial na narrativa não apenas como interlocutores, mas como catalisadores para o desenvolvimento espiritual e teológico de Jó. Sua presença e argumentos fornecem a Jó a oportunidade de confrontar e refinar suas próprias crenças sobre Deus e o sofrimento. Através do diálogo com Elifaz, Bildade e Zofar, Jó é levado a uma introspecção mais profunda e a uma compreensão mais amadurecida da justiça divina e da relação entre o sofrimento e a fé. Assim, os amigos de Jó, embora errôneos em suas respostas, são instrumentos necessários para o processo de crescimento e revelação de Jó, que culmina na sua experiência direta com Deus e na restauração da sua compreensão espiritual.”
Gerhard von Rad, teólogo do Antigo Testamento e especialista em livros sapienciais
Não seria prudente, na sequência de nossos estudos no Livro de Jó, iniciarmos o estudo dos capítulos, sem antes fazermos algumas ponderações sobre os amigos que dividem as cenas da obra com ele. Os “amigos de Jó”, assim declarados e participantes ativos da narrativa, são fundamentais para a construção do drama teológico e humano que permeia toda a obra. Esses personagens – Elifaz, Bildade, Zofar e, posteriormente, Eliú – representam, em suas diferentes abordagens, uma tentativa de explicar o sofrimento humano à luz da justiça divina. A complexidade dessa interação não se restringe a um simples diálogo de consolo, mas adentra o cerne de questões existenciais e espirituais que desafiam o entendimento tradicional da relação entre Deus e o ser humano.
Os
amigos de Jó se inserem na narrativa como representantes de diferentes
correntes de pensamento da época sobre a retribuição divina, ou seja, a crença
de que a prosperidade é uma recompensa pela justiça e o sofrimento, uma consequência
do pecado. Eles trazem uma cosmovisão comum no Antigo Oriente Próximo, onde se
acreditava que Deus governava o mundo de maneira justa e previsível, de forma
que o sofrimento só poderia ser explicado como resultado de alguma transgressão
humana. Essa teologia da retribuição permeia grande parte da literatura
sapiencial do Antigo Testamento, e os amigos de Jó são os seus porta-vozes mais
fervorosos.
No
entanto, o que torna esses diálogos tão relevantes e profundos é a tensão que
se estabelece entre a experiência de Jó – um homem justo que sofre de forma
inexplicável – e as respostas tradicionais oferecidas pelos seus amigos. À
medida que Elifaz, Bildade e Zofar tentam convencer Jó de que seu sofrimento
deve ser resultado de algum pecado oculto ou não confessado, Jó, em
contrapartida, se mantém firme em sua defesa de inocência, questionando a
equidade de Deus. Esse impasse reflete um conflito mais amplo entre a fé
inabalável em um Deus justo e a realidade desconcertante de um mundo onde a
injustiça e o sofrimento aparentemente imerecido ocorrem.
Elifaz,
Bildade e Zofar, apesar de suas boas intenções, são limitados pela sua visão
estreita e convencional. Cada um deles oferece uma perspectiva que, de algum
modo, condena Jó, sem conseguir sondar as profundezas do mistério do sofrimento
humano. Elifaz se apoia em sua experiência pessoal e espiritual, sugerindo que
a disciplina divina é a resposta natural para o sofrimento. Bildade, por sua
vez, é o tradicionalista, que apela à sabedoria dos antigos e vê o sofrimento
como um sinal evidente da justiça de Deus em ação. Zofar é o mais impaciente e
severo, acusando Jó de presunção e insistindo que ele está sendo tratado com
menos severidade do que merece. Nenhum deles, porém, é capaz de ver além do
paradigma da retribuição, o que os impede de compreender a verdadeira natureza
do sofrimento de Jó.
Eliú,
o quarto personagem a intervir, traz uma nova perspectiva, adicionando
complexidade ao debate. Embora critique tanto Jó quanto seus amigos, Eliú
propõe que o sofrimento pode ser pedagógico, uma ferramenta que Deus usa para
ensinar e corrigir, e não meramente punitivo. Eliú tenta transcender a visão
limitada dos outros amigos, apontando para um Deus que é soberano e justo, mas
cujos caminhos são mais elevados do que a compreensão humana. Ele prepara o
terreno para a intervenção direta de Deus, onde as respostas definitivas, ou a
falta delas, se tornam claras.
FRENTE A FRENTE COM CADA UM DOS
TRÊS
“Os amigos de Jó, conforme descrito no livro de Jó,
representam a teologia da retribuição que prevalecia no Antigo Oriente Próximo.
Eles acreditavam que o sofrimento é sempre uma consequência direta do pecado e
que a justiça divina opera de maneira previsível e proporcional. Essa
perspectiva é evidente em seus discursos, que tentam convencer Jó de que seu
sofrimento deve ser uma punição por algum pecado oculto. No entanto, a
narrativa do livro subverte essa visão, demonstrando que o sofrimento pode
ocorrer de maneiras que transcendem a explicação simplista da retribuição
divina. Assim, os amigos de Jó, com suas intenções bem-educadas, acabam por
ilustrar a insuficiência das respostas teológicas convencionais diante do
mistério do sofrimento humano.”
John Walton, professor de Antigo Testamento na Wheaton College
O
papel de cada um dos amigos, portanto, vai além de meras figuras de consolo que
falham em sua missão. Eles são personagens essenciais para o desenvolvimento
teológico do livro, permitindo que o autor explore as insuficiências das
explicações humanas tradicionais para o sofrimento. Suas falas expõem os
limites da sabedoria humana quando confrontada com o mistério divino, enquanto
a resistência de Jó à simplificação dessas respostas ressalta a complexidade da
fé em meio à dor. Ao final, a presença dos amigos de Jó serve como um
contraponto necessário para a revelação final de Deus, que desfaz as tentativas
humanas de justificar o sofrimento com base em uma teologia simplista,
conduzindo a uma visão mais profunda e misteriosa da soberania divina.
Essa
dinâmica entre Jó e seus amigos convida o leitor a refletir sobre o papel do
sofrimento na vida humana e a maneira como as respostas tradicionais, embora
frequentemente bem-intencionadas, podem ser insuficientes diante de realidades
mais profundas e inexplicáveis. Vamos falar sobre os três amigos de Jó, além do
quarto jovem que também interage com ele no decorrer da narrativa. Esses
personagens desempenham papéis fundamentais no desenvolvimento do diálogo sobre
o sofrimento, a justiça divina e a experiência humana. Vamos a uma análise mais
detalhada, com base nas referências bíblicas, históricas e teológicas disponíveis:
1. ELIFAZ, O TEMANITA
Referências
bíblicas: Jó 4–5; 15; 22.
Elifaz
é o primeiro a falar com Jó, e o fato de ser mencionado primeiro em várias
ocasiões sugere que ele talvez fosse o mais velho ou o mais respeitado entre os
amigos. Ele é descrito como um temanita, o que indica sua origem em Temã, uma
cidade em Edom, descendente de Esaú (cf. Gênesis 36:11). Historicamente, Temã
era conhecida por sua sabedoria (Jeremias 49:7), o que pode indicar que Elifaz
era um homem considerado sábio e experiente.
Teologia
e Argumentação:
Elifaz
é o mais filosófico dos amigos de Jó e sua visão do sofrimento é baseada na
retribuição direta. Ele argumenta que Deus é justo e que o sofrimento é o
resultado inevitável do pecado. Elifaz apela à sua experiência pessoal, afirmando
que "os que lavram a iniquidade e semeiam o mal, isso mesmo colhem"
(Jó 4:8). Ele também relata uma experiência espiritual, na qual uma voz
sobrenatural lhe revelou que nenhum homem pode ser mais justo que Deus (Jó
4:12-21).
Elifaz
defende que Jó deve aceitar seu sofrimento como disciplina divina e buscar
arrependimento. Sua posição teológica está enraizada na crença em um Deus que
sempre recompensa os justos e pune os ímpios, uma perspectiva comum nas
sabedorias antigas. No entanto, ele não consegue entender que o sofrimento de
Jó é um teste de sua fé e integridade, e não uma punição por pecados
específicos.
2. BILDADE, O SUÍTA
Referências
bíblicas: Jó 8; 18; 25.
Bildade,
o suíta, é o segundo amigo a falar. A origem de Bildade é atribuída aos suítas,
uma tribo mencionada no Antigo Testamento como descendentes de Abraão com
Quetura (cf. Gênesis 25:2). Sua postura é mais rigorosa que a de Elifaz e ele
apela para a tradição e a sabedoria dos antigos como base de sua argumentação
(Jó 8:8-10).
Teologia
e Argumentação:
Bildade
representa uma abordagem mais legalista e dogmática. Ele afirma que Deus não
perverte a justiça e que Jó deve ter pecado, pois seus filhos foram destruídos
por causa de sua transgressão (Jó 8:4). Ele destaca a transitoriedade do ser humano
e compara a existência do ímpio a uma planta que é arrancada e morre (Jó
8:11-19). Seu argumento é que Jó deve buscar a Deus em arrependimento, pois
Deus restauraria sua fortuna se ele fosse verdadeiramente justo.
Teologicamente,
Bildade representa o tradicionalismo rígido, onde o sofrimento sempre resulta
do pecado. Sua visão se aproxima de uma teodiceia retributiva simples,
ignorando as nuances da vida humana e a complexidade do relacionamento entre Deus
e o homem. Como Elifaz, Bildade também falha em reconhecer que o sofrimento de
Jó é uma provação divina, e não uma consequência direta do pecado.
3. ZOFAR, O NAAMATITA
Referências
bíblicas: Jó 11; 20.
Zofar,
o naamatita, é o terceiro a falar e também o mais severo e direto dos amigos.
Sua origem está em Naamá, embora a localização exata não seja clara, podendo se
referir a uma cidade na região de Canaã (Josué 15:41) ou relacionada à
descendência de Caim (Gênesis 4:22). Ele fala menos do que os outros amigos,
mas suas palavras são particularmente duras e veementes.
Teologia
e Argumentação:
Zofar
assume uma postura extremamente rígida. Ele acredita que Jó não está sendo
punido o suficiente pelo que merece (Jó 11:6). Sua teologia é simples e direta:
Deus é justo e Jó é culpado de algum pecado não confessado. Ele acusa Jó de
falar demais e de não conhecer os mistérios de Deus. Zofar afirma que a única
solução para o sofrimento de Jó é o arrependimento. Ele defende que Deus é
insondável e, portanto, o homem não pode questionar Seus caminhos (Jó 11:7-9).
Zofar
representa uma teologia ainda mais extrema de retribuição. Ele não apenas
acredita que Jó é pecador, mas também expressa a visão de que os caminhos de
Deus são impenetráveis e que Jó deveria aceitar sua condição sem questionar.
Sua visão teológica é simplista e impiedosa, sugerindo que o sofrimento de Jó é
justificado por alguma culpa secreta.
4. ELIÚ, O BUZITA
Referências
bíblicas: Jó 32–37.
Eliú,
o quarto e mais jovem personagem a falar, aparece mais tarde no texto, após a
troca de discursos entre Jó e os três amigos. Ele é descrito como buzita,
descendente de Buz, uma tribo mencionada em Gênesis 22:21. Eliú entra na
discussão indignado tanto com Jó quanto com seus amigos: com Jó, por
justificar-se diante de Deus, e com os amigos, por falharem em apresentar uma
defesa satisfatória de Deus.
Teologia
e Argumentação:
Eliú
oferece uma nova perspectiva. Ele acredita que o sofrimento pode ter um
propósito educativo e corretivo, e não necessariamente ser uma punição pelo
pecado. Ele aponta que Deus fala de várias maneiras – inclusive por meio do
sofrimento – para ensinar e corrigir o ser humano (Jó 33:14-30). Eliú defende
que Jó está errado ao questionar a justiça de Deus, mas também critica os três
amigos por não entenderem a verdadeira razão do sofrimento de Jó.
Eliú,
apesar de ser jovem, demonstra uma visão teológica mais equilibrada e profunda
em comparação com os outros. Ele reconhece que Deus usa o sofrimento para
revelar algo ao ser humano, para discipliná-lo e preservá-lo do mal maior (Jó
36:10-15). Seu discurso é o último antes de Deus falar diretamente com Jó e é geralmente
visto como uma transição para a resposta final de Deus.
CONCLUSÃO
Cada
um desses personagens representa diferentes abordagens e teologias sobre o
sofrimento humano e a justiça divina:
• Elifaz traz a experiência e a sabedoria dos
antigos, com uma visão filosófica, mas limitada, da justiça divina.
• Bildade é o tradicionalista rígido, que
acredita em uma visão estática de retribuição.
• Zofar é o mais severo e impiedoso, enfatizando
que o ser hu-mano não pode questionar a justiça de Deus.
• Eliú, por outro lado, oferece uma visão mais madura e teologicamente sofisticada, destacando que o sofrimento pode ter um propósito educacional e redentor, preparando o caminho para a intervenção de Deus.
Essas diferentes vozes enriquecem a narrativa, oferecendo uma gama de perspectivas sobre questões como justiça, sofrimento e a relação entre Deus e o ser humano.