terça-feira, 28 de maio de 2024

Exercício 4 - Desventuras apesar da fé e vice-versa

Por Jânsen Leiros Jr.

 

 13Sucedeu um dia, em que seus filhos e suas filhas comiam e bebiam vinho na casa do irmão primogênito,14 que veio um mensageiro a Jó e lhe disse: Os bois lavravam, e as jumentas pasciam junto a eles;15 de repente, deram sobre eles os sabeus, e os levaram, e mataram aos servos a fio de espada; só eu escapei, para trazer-te a nova.16 Falava este ainda quando veio outro e disse: Fogo de Deus caiu do céu, e queimou as ovelhas e os servos, e os consumiu; só eu escapei, para trazer-te a nova.17 Falava este ainda quando veio outro e disse: Dividiram-se os caldeus em três bandos, deram sobre os camelos, os levaram e mataram aos servos a fio de espada; só eu escapei, para trazer-te a nova.18 Também este falava ainda quando veio outro e disse: Estando teus filhos e tuas filhas comendo e bebendo vinho, em casa do irmão primogênito,19 eis que se levantou grande vento do lado do deserto e deu nos quatro cantos da casa, a qual caiu sobre eles, e morreram; só eu escapei, para trazer-te a nova.

20 Então, Jó se levantou, rasgou o seu manto, rapou a cabeça e lançou-se em terra e adorou;21 e disse: Nu saí do ventre de minha mãe e nu voltarei; o Senhor o deu e o Senhor o tomou; bendito seja o nome do Senhor!22 Em tudo isto Jó não pecou, nem atribuiu a Deus falta alguma.

Jó 1:13-22 - ARA 

 

 

Reflexão sobre a Resiliência de Jó: Teologia e Perseverança na Fé

Finalizando nossa incursão pelo primeiro capítulo do Livro de Jó, chegamos à sequência devastadora de calamidades que acometem nosso herói. Um homem íntegro e temente a Deus, cujo testemunho a narrativa atribui ao próprio Criador, é subitamente acometido por uma série de infortúnios devastadores, perdendo seus bens, seus servos e, tragicamente, todos os seus filhos. Este trecho, que descreve as calamidades que se abatem sobre Jó, serve como um prelúdio para a exploração profunda dos temas centrais do livro: a natureza do sofrimento humano, a justiça divina e a perseverança na fé. A reação de Jó a esses eventos, que aponta para uma fé inabalável e uma submissão total à soberania de Deus, estabelece o tom para as discussões teológicas subsequentes e completa a moldura que enquadrará todo desenvolvimento do livro.

No trecho que lemos acima, cada mensageiro que chega traz uma notícia pior que a anterior, culminando em uma situação de completa angústia e luto, pelo tsunami de tragédias que lhe são comunicadas. A reação de Jó a essas tragédias é particularmente notável e merecerá uma análise aprofundada adiante. Antes, porém, nos deteremos em uma análise que pode ser um tanto inusitada para alguns, mas extremamente relevante para nossos estudos à frente.

A Pretensão Teológica da Narrativa das Tragédias em Série

A estrutura narrativa das tragédias que se abatem sobre Jó pode ser entendida não apenas como um relato dramático, mas como uma construção teológica intencional. A sequência rápida e devastadora dos eventos, parece projetada para destacar a reação imediata e instintiva de Jó, sublinhando a natureza intuitiva e devocional de sua fé. Além disso, essa estrutura narrativa também serve para evidenciar a inocência de Jó, esclarecendo que seu sofrimento não é consequência de más escolhas ou atos pecaminosos. Ou seja, a avalanche sobre Jó ambienta as seguintes questões do livro:

Fundamentos Bíblicos e Teológicos

1.  A Soberania de Deus: A rapidez e a intensidade das tragédias reforçam a soberania absoluta de Deus. Jó reconhece que tudo vem de Deus, e essa percepção é fundamental para a teologia do livro. A reação de Jó Nu saí do ventre de minha mãe e nu voltarei; o Senhor o deu e o Senhor o tomou; bendito seja o nome do Senhor! - Jó 1:21, demonstra uma aceitação total da vontade divina, sem tempo para uma reação racionalizada. Isso é consistente com outras partes da Bíblia que enfatizam a soberania de Deus, como em Isaías 45:7, onde Deus diz Eu formo a luz e crio as trevas; faço a paz e crio o mal; eu, o Senhor, faço todas essas coisas[1].

2.  A Natureza do Sofrimento: O modelo da narrativa serve ainda para mostrar a natureza abrupta e inexplicável do sofrimento. Em Eclesiastes 9:12, lemos Pois o homem não conhece a sua hora; como peixes que se apanham com a rede traiçoeira, e como passarinhos que se prendem com laço, assim se enlaçam os filhos dos homens no mau tempo, quando este cai de repente sobre eles. Essa passagem sugere que o sofrimento pode ocorrer de maneira repentina e avassaladora, sem dar tempo para uma análise racional detalhada.

3.  Fé Intuitiva versus Racionalidade: A construção narrativa das calamidades de Jó destaca uma fé que é intuitiva e baseada na confiança na soberania de Deus, em vez de uma resposta calculada. Jesus também ressalta a importância de uma fé pura e intuitiva em Marcos 10:15. Em verdade vos digo que qualquer que não receber o reino de Deus como uma criança, de maneira nenhuma entrará nele. A fé de uma criança é instintiva e total, semelhante à reação de Jó[2].

4.  Sofrimento Não Retributivo: A sequência das calamidades que ocorrem sobre Jó também serve para deixar claro que seu sofrimento não é retributivo. Jó é descrito como homem íntegro e reto, temente a Deus e que se desvia do mal (Jó 1:1). A ausência de qualquer menção de pecado ou falha de Jó no contexto das calamidades destaca sua inocência. Este ponto é crucial para a discussão teológica subsequente entre Jó e seus amigos, que erroneamente associam seu sofrimento a algum pecado oculto. A Bíblia reitera essa visão em João 9:1-3, onde Jesus cura um cego de nascença e explica que a cegueira do homem não era resultado de pecado, mas para que as obras de Deus se manifestem nele[3].

A Resposta de Jó: Fé e Adoração

Agora olhando para a reação de Jó propriamente dita, após a notícia da morte de seus filhos, ele rasga suas vestes, rapa a cabeça e se prostra em terra[4]. Esses gestos são expressões tradicionais de luto e dor na cultura antiga, simbolizando uma profunda aflição. No entanto, a reação verbal de Jó transcende a mera expressão de sofrimento:

"Nu saí do ventre de minha mãe e nu voltarei; o Senhor o deu e o Senhor o tomou; bendito seja o nome do Senhor!" (Jó 1:21)[5]

Aqui, Jó reconhece a soberania de Deus sobre todas as coisas. Sua declaração mostra uma compreensão teológica profunda de que tudo o que possui, incluindo sua própria vida, é um dom de Deus. A aceitação de Jó da vontade divina, sem atribuir a Deus culpa ou injustiça, reflete uma fé inabalável.

Teólogos como Agostinho e Tomás de Aquino comentaram sobre a figura de Jó como exemplo de paciência e submissão à vontade divina. Agostinho, em suas obras, vê em Jó um símbolo da fortaleza espiritual, alguém que, apesar das tribulações, não perdeu sua integridade nem blasfemou contra Deus. Já Tomás de Aquino, na "Suma Teológica", destaca que Jó é um exemplo de virtude porque mantém sua fé e retidão moral apesar do sofrimento. Ele argumenta que Jó compreende a natureza transitória dos bens materiais e a suprema autoridade de Deus sobre todas as coisas.

O livro de Jó lida com a questão do sofrimento do justo e a justiça de Deus. A reação de Jó aos seus infortúnios está diretamente ligada ao tema central: a busca por compreensão do propósito do sofrimento humano sob a ótica da justiça divina. Jó não conhece a razão de seu sofrimento, mas escolhe confiar em Deus.

A história de Jó nos ensina que a fé verdadeira envolve aceitar tanto os dons quanto as provações de Deus com um coração submisso e adorador. Jó não apenas sobrevive ao sofrimento, mas o transforma em uma oportunidade para reafirmar sua confiança em Deus. Sua resposta diante das calamidades é um testemunho poderoso de resistência espiritual e entrega incondicional à vontade divina.

O trecho final do capítulo um, portanto, nos desafia a refletir sobre nossa própria fé. Estamos prontos a bendizer o nome do Senhor em meio às tempestades da vida? Jó nos mostra que é possível adorar a Deus não apesar do sofrimento, mas através dele, reconhecendo sempre a Sua soberania e bondade, mesmo quando não compreendemos os Seus caminhos.



[1] Karl Barth: Barth, em sua teologia dialética, enfatiza a transcendência e a soberania de Deus. Ele argumenta que a revelação de Deus em Jesus Cristo é paradoxal e surpreendente, desafiando a racionalidade humana. Esse conceito pode ser aplicado à narrativa de Jó, onde a soberania de Deus se manifesta de forma inesperada e devastadora, exigindo uma resposta de fé imediata e intuitiva.

[2] Dietrich Bonhoeffer: Bonhoeffer fala da “fé simples” que se apega a Deus em meio às complexidades e sofrimentos da vida. Ele sugere que a verdadeira fé não é construída através de um processo racional, mas através de uma confiança inabalável em Deus, especialmente em tempos de crise.

[3] Gustavo Gutiérrez: Em "On Job: God-Talk and the Suffering of the Innocent," Gutiérrez argumenta que o sofrimento de Jó é uma reflexão sobre a injustiça e a ausência de retribuição automática, desafiando a teologia da retribuição simples. Ele sugere que o sofrimento de Jó é uma plataforma para discutir a fidelidade e a justiça de Deus em um contexto onde o sofrimento não é merecido.

[4] As ações de Jó ao rasgar suas vestes, rapar a cabeça e se prostrar em terra são gestos de luto e dor profundamente enraizados nas culturas do antigo Oriente Médio, incluindo as civilizações hebraica, cananeia, egípcia, assíria e babilônica. Esses atos eram manifestações externas de sofrimento e respeito pelas tragédias e perdas pessoais.

Na cultura hebraica, as atitudes de Jó tinham os seguintes significados:

Rasgar as Vestes

·         Significado: Rasgar as vestes era um símbolo de profunda tristeza e luto. Era um gesto de desespero e angústia, representando a ruptura do estado emocional do indivíduo.

·         Fundamento Bíblico: Este ato é frequentemente mencionado na Bíblia. Em Gênesis 37:34, Jacó rasga suas vestes ao ouvir sobre a suposta morte de seu filho José. Em 2 Samuel 1:11, Davi rasga suas vestes ao saber da morte de Saul e Jônatas.

Rapar a Cabeça

·         Significado: Rapar a cabeça simbolizava humilhação e lamentação. Era um sinal de submissão diante de uma calamidade e uma expressão de luto.

·         Fundamento Bíblico: Em Isaías 22:12, Deus chama o povo ao luto, incluindo rapar a cabeça e vestir-se de pano de saco. Jeremias 7:29 também menciona este ato como um símbolo de lamentação.

Prostrar-se em Terra

·         Significado: Prostrar-se em terra era uma expressão de humildade e submissão completa a Deus. Era um ato de adoração e rendição à vontade divina.

·         Fundamento Bíblico: Jó se prostra em terra para adorar (Jó 1:20), mesmo em meio ao sofrimento. Esse ato é também visto em Gênesis 17:3, onde Abraão se prostra diante de Deus.

[5] Jó 1:21, é um dos mais citados e comentados nas escrituras, com profundos significados teológicos. A seguir, apresento alguns dos principais comentários teológicos sobre este trecho e o que disseram teólogos renomados:

1. John Calvin (João Calvino)

·         Comentário: Calvino destaca a aceitação da soberania de Deus e a submissão total de Jó à vontade divina. Para ele, este versículo exemplifica a verdadeira piedade e a confiança em Deus, mesmo em meio à adversidade.

·         Citação: “Jó reconhece a mão de Deus em tudo o que lhe aconteceu, e ao invés de reclamar, ele bendiz a Deus, mostrando uma fé que não depende das circunstâncias.”

2. Matthew Henry

·         Comentário: Henry vê este versículo como um exemplo de resignação cristã e humildade. Ele ressalta que Jó não apenas reconhece a soberania de Deus, mas também encontra motivo para louvar a Deus em meio ao sofrimento.

·         Citação: “Jó nos ensina a bendizer a Deus não apenas quando Ele dá, mas também quando Ele tira. Ele nos mostra que tudo o que temos é um dom de Deus, e portanto, devemos estar prontos para dar glória a Deus em todas as situações.”

3. Thomas Aquinas (Tomás de Aquino)

·         Comentário: Aquino interpreta este versículo dentro do contexto da teodiceia, explorando a questão do sofrimento e da justiça divina. Ele argumenta que Jó reconhece a justiça e a bondade de Deus, independentemente das circunstâncias.

·         Citação: “Jó reconhece que o ser humano vem ao mundo sem nada e nada leva quando parte. Esta visão sublinha a dependência total do homem em relação a Deus e a justiça divina em todas as ações.”

4. Gustavo Gutiérrez

·         Comentário: Em sua obra “On Job: God-Talk and the Suffering of the Innocent,” Gutiérrez vê a declaração de Jó como um reconhecimento de que a justiça de Deus transcende a compreensão humana e que a fé verdadeira envolve confiar em Deus mesmo na ausência de explicações racionais para o sofrimento.

·         Citação: “Jó nos ensina que a fé verdadeira não é uma barganha com Deus, mas uma confiança incondicional. Através de sua aceitação do sofrimento, Jó nos mostra que a justiça e a bondade de Deus estão além da nossa compreensão.”

5. Karl Barth

·         Comentário: Barth vê a declaração de Jó como um exemplo de fé dialética, onde a relação do homem com Deus é marcada por uma tensão entre desespero e esperança. Ele argumenta que a reação de Jó representa um reconhecimento da soberania absoluta de Deus.

·         Citação: “A fé de Jó é paradoxal, pois ao mesmo tempo em que ele sofre profundamente, ele também louva a Deus. Esta é a essência da verdadeira fé, uma aceitação radical da soberania de Deus sobre todas as coisas.”

6. Dietrich Bonhoeffer

·         Comentário: Bonhoeffer interpreta a reação de Jó como uma expressão de fé inabalável e uma demonstração de que a verdadeira adoração a Deus não depende das circunstâncias. Ele vê em Jó um exemplo de como a fé pode resistir ao teste do sofrimento.

·         Citação: “Jó mostra que a verdadeira fé não é um contrato com Deus, mas uma rendição completa à Sua vontade. Ao dizer 'bendito seja o nome do Senhor', Jó afirma que Deus é digno de louvor independentemente de nossas circunstâncias.”